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ENTREVISTA | A engenharia literária de Fernando Machado: um bate-papo sobre “Gastura” e uma perspectiva do século XX
Em “Gastura” (Editora Labrador, 304 págs.), Fernando Machado, engenheiro aposentado e escritor autodidata, revela uma intrigante narrativa autobiográfica, percorrendo os eventos marcantes do século XX, da chegada da televisão no Brasil ao Bug do Milênio. Com influências da literatura de Alcoólicos Anônimos e de vários escritores contemporâneos, Machado tece sua história com um estilo literário despojado e ousado.
Aos 75 anos, pouco antes da pandemia, em 2019, iniciou sua incursão literária após uma terapia de regressão, revelando uma memória viva. Seu processo engenhoso de escrita, uma abordagem salteada, culminou em "Gastura". Além deste livro, Machado está imerso na criação de "Spoiler", romance ficcional que envolve temas polêmicos como gênero, raça e preconceito. Sua perspectiva única e corajosa destaca-o como uma voz relevante no cenário literário, oferecendo aos leitores uma visão autêntica do século XX através de sua vida singular.
Leia entrevista completa com o autor.
1 - Sobre o que é “Gastura”?
É um registro da história brasileira, americana e mundial de meados da década de 40 até o ano 2000, mas sobretudo, é a minha história, como linha de tempo desses registros. Compartilho a vida com minha família, aventuras de férias, os anos de faculdade, idas e vindas no amor, minha decisão de abandonar a bebida alcoólica e outras intimidades.
Durante um longo tratamento psicoterapêutico, por sugestão da psicóloga, escrevi um inventário das seções e os assuntos analisados em cada uma. Ao final do processo, organizei os manuscritos, estudei os fatos históricos mencionados e transformei tudo neste livro.
2 - Você escreve desde quando?
Comecei a escrever em 2019, pouco antes da pandemia, aos 75 anos, por acidente de percurso, uma vez que eu nunca havia pensado nesta possibilidade. Entretanto, iniciei uma terapia de regressão bem fundamentada em 2018 que resultou tão cheia de detalhes e lembranças, que acabei por fazer um inventário minucioso das seções, transformado em livro, no ano seguinte.
3 - Quais são os temas principais de “Gastura”?
O leitor, através da minha biografia, vai embarcar numa viagem sequencial pelos principais acontecimentos históricos da segunda metade do século XX, desde a chegada da televisão no Brasil até o Bug do Milênio, na passagem de 1999 para 2000.
Existem muitas maneiras de contar uma história. Nas páginas do livro eu revelo o jeito que encontrei de contar a minha, alternando fatos pessoais e acontecimentos históricos, políticos, sociais, criminais, musicais e esportivos.
4 - Quais foram as principais influências literárias para escrever “Gastura”?
Na concepção dos romances ficcionais inspirei-me em vários autores, como, por exemplo, a espanhola Rosa Montero ou Ernest Hemingway. Entretanto, para a escrita autobiográfica e histórica de “Gastura”, foi fundamental, levar em consideração, a extensa literatura de Alcoólicos Anônimos. Foi nas salas do AA, que detive a compulsão pelo álcool e aprendi a “Viver Sóbrio”, um dia de cada vez, até o momento. Trinta anos depois.
5 - Como é o seu processo de criação?
Despojado, ousado, perfeccionista.
Um processo de engenharia literária: divido a história que pretendo criar em múltiplas partes e passo a escrever de modo salteado. Começo por uma parte aleatória e escrevo até me sentir esgotado; deixo-a inconclusa e escolho outra parte (do começo, meio ou fim) para fazer o mesmo, e assim por diante.
Depois passo a concluir cada parte e no final, alinho todos os trechos e componho o rascunho da história do início ao término. Para finalizar, faço as revisões, mais revisões e mais revisões.
6 - Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho ritual nem meta diária, porém eu me esforço para escrever todos os dias, inclusive sábado, domingo e feriado, nem que seja só um parágrafo. Para mim é indiferente se escrevo de manhã, tarde ou noite.
7 - Escrever diariamente traz mais qualidade de vida para você?
A prática diária da escrita beneficiou e continua beneficiando minha saúde mental, tal é a quantidade de letras, símbolos, palavras, regras e conceitos que circulam pela memória octogenária, cada vez mais rápido, “lubrificando” os neurônios ativados durante a escrevedura, afastando-me da inércia e da prostração.
8 - Você frisa bastante seu processo terapêutico na influência para sua escrita. Como você começou a fazer terapia?
Meu empenho em seguir adiante nas sessões de terapia, de modo intermitente, desde o início da fase adulta — aos trinta anos —, até os tempos atuais — aos oitenta —, proporcionou-me o ingresso, na fase octogenária da existência, não como matusalém, mas como “experiente”; provido de autonomia plena, bem-estar físico e memória privilegiada.
No início de 2017, com setenta e quatro anos, iniciei um novo ciclo de psicoterapia, que proporcionou frutos inesperados. As sessões persistentes, por dezoito meses ininterruptos, levaram-me a recordar fatos longínquos com tamanha perspicuidade, que fui tentado a registrá-los por escrito. Deste registro seguiu-se um destemido inventário que, por sua vez, resultou em “Gastura”, o meu primeiro livro publicado.
9 - Como terapia e escrita se relacionam na sua vida?
A terapia tornou-se, para mim, uma manifestação literária oral, onde o leitor — no caso o ouvinte — não é desagregado. Ele revela-se espontaneamente, em sincronia com o que está sendo dito, através da voz, do silêncio, da expressão facial sensível, do olhar perscrutador, dos gestos contidos e da postura de seu corpo. Quando escrevi “Phenix”, o meu segundo livro, eu já identificava essas revelações sutis, com mais serenidade.
A escrita é uma faca de dois gumes “semelhantes”, em relação à terapia. Se, por um lado, experimentos emocionais — tais como a sensação persistente de fracasso e os traumas do passado trazidos à tona —, são levados para dentro do ambiente terapêutico; em contrapartida, eles são intelectualmente restituídos — refinados, conceituados e ressignificados — ao ambiente de criação literária.
10 - Quais são seus projetos atuais? Algum lançamento num futuro próximo?
Atualmente, estou me dedicando à escrita de meu terceiro livro, com o título provisório de “Spoiler”, de uma forma bem mais leve e solta, como se fosse um prolongamento das sessões terapêuticas, tal o alívio que eu sinto ao escrever. A síntese desta história, está plenamente enraizada na minha memória e, desta forma, me sinto bem confortável em não a escrever pelo começo, mas de forma aleatória, a partir dos pontos mais relevantes. Pretendo lançar no primeiro semestre de 2024.