Ensaio para um diário semi-inventado: As imagens de hoje e outras notas

por Luís de Barreiros Tavares__






Madeira, húmus, sol – III (2023) — fotografia © Luís de Barreiros Tavares





“Para mim ser é admirar-me de estar sendo.” (Fernando Pessoa, Primeiro Fausto)

Segunda-feira – 23/10/2023



Vida e morte

“Quando raciocinamos acerca do que se passará depois da nossa morte não será a nós vivos que por erro projectamos nesse momento?” (Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido A fugitiva – Albertine desaparecida)

Morreu um amigo. Projectamo-nos no outro quando morto, como se fôssemos nós que estivéssemos mortos; mas por contraponto ao facto de que estamos vivos. Imaginamos assim o que é estar nessa condição, mas numa sobreposição ou transposição forjada comportando esses dois factos, tentando perceber o que é estar assim, o que é estar morto.


Quarta-feira – 25-10-2023

O tempo no Facebook

Da janela sobranceira do Facebook, num suposto presente supra-actual, mas volátil e dissipativo, como atesta a torrente passageira das publicações em catadupa, atrás umas das outras e desaparecendo quase no seu próprio momento, vamos vendo também as coisas antigas. Como se do tempo fôssemos detentores. Acontece hoje, frequentemente, a publicação de duas imagens fotográficas de um mesmo sítio histórico ou famoso. Essas duas imagens chegam a distar no tempo cem anos ou mais (“distar”, curioso aqui o cunho espacial do tempo). Elas são acompanhadas das respectivas datas de captação. E a mais recente aproxima-se ou é a do tempo actual enquanto ano corrente. Curioso aqui o facto de se tratar de duas fotografias, quer dizer, de dois registos segundo dispositivos técnicos familiares, digamos assim, em duas fases de evolução técnica. Como se o presente actual fosse o tempo dominante que nos conferisse uma supremacia a vários títulos, a começar pelo “progresso” a par de uma consciência superior: a constatação das distâncias temporais a partir de um posto de controlo (vermos as diferenças). E quando as imagens ainda estão mais distantes no tempo, a mais antiga é uma pintura ou uma reconstituição enquanto a mais recente é uma fotografia.



Londres – Parlamento, Big Ben e meios de transporte na ponte de Westminster.


Sábado – 28/10/2023

Sobre a adicção ao ecrã digital. 

O que é engraçado é que estamos muitas das vezes detidos, capturados por uma estrutura totalmente evanescente: a Internet (uma teia ou rede electrónicai, mpalpável e pairante). Estranha forma de alienação, pois não se trata propriamente de/para um outro (alienação vem do latim alienus: de outrem, que pertence a outrem; alienare: vender, ceder, tornar-se outro, etc.) nem de um objecto, tão-pouco de uma dimensão mental para os quais tendamos irresistivelmente.  

A realidade, hoje, por outro lado, afigura-se-nos tão evidente com a exposição às luzes e com as próprias luzes – incluídas no suporte que a Net lhes confere –, que ficamos pouco susceptíveis de encarar despojadamente o real concreto do chão, das paredes, das casas, dos transeuntes, das árvores, das flores, das plantas, enfim, das coisas na sua evidência mais pura, ou mais propriamente elementar. 


Domingo – 29-10-2023

Síndrome de Paris

Quanto à luz digital das fotografias, há a chamada “síndrome de Paris”. Os turistas japoneses traziam na bagagem (nos telemóveis) imagens da “Cidade Luz” mais luminosas e depuradas – uma idealização de Paris – traindo a palpabilidade e visibilidade imediata e presente dos espaços in loco.  As fotografias eram investidas de uma espécie de cosmética cromática e luminosa ao ponto de abafarem a realidade da cidade quando esta era visitada. Os turistas ficavam totalmente decepcionados, deprimidos, necessitando por vezes de assistência médica de foro psicológico. Tratava-se da incapacidade de desfrutar a pedra, o chão, a sujidade natural, a coloração do real, da luz material das coisas, das ruas e das casas à vista desarmada. Este fenómeno estendeu-se progressivamente a todas as grandes cidades turísticas.

Sobre a “síndrome de Paris”, Byung-Chul Han escreve: “Podemos supor que a tendência compulsiva, quase histérica, que impele os turistas japoneses a fotografar sem descanso, representa uma reacção de defesa inconsciente, que procura esconjurar a terrível realidade através das imagens. As belas fotos são imagens ideais que os blindam perante a suja realidade.” (Byung-Chul Han, No Enxamereflexões sobre o digital [2013]).

O obsceno

Já em 1983 Jean Baudrillard escrevia acerca do obsceno em termos de visibilidade, nesta passagem de uma forma mais geral: 

“Mais visível que o visível, isso é o obsceno.

Mais invisível que o invisível, isso é o secreto.

A cena é da ordem do visível. Mas já não há cena do obsceno, só há a dilatação da visibilidade de todas as coisas até ao êxtase. O obsceno é o fim de toda a cena. Ademais, é de mau augúrio, como o seu nome indica. Pois esta hipervisibilidade das coisas também é a iminência do seu fim, o signo do apocalipse.” (Jean Baudrillard, Las estrategias fatales)

Kafka

“ – Porquê protestar? Se uma pessoa se conformar com as imagens tornar-se-á também imagem e, deste modo, se libertará das preocupações quotidianas. 

– Aposto que também isso é uma imagem.” (Franz Kafka, “Símbolos”)


Terça-feira – 31-10-2023

O “Quadrângulo Negro” de Malevich

Só quem compreende a amplidão do “branco abissal” e do “nada libertado” no “Quadrângulo negro sobre fundo branco” (ou “Quadrado Negro…”, “O ícone do nosso tempo” – 1915) de Malevich, poderá ter a percepção da potência e o alcance dos espaços e do espiritual num quadro como este com dimensões tão modestas (79,5 x 79,5 cm), comparado com as grandes telas, muitas vezes pletóricas, na arte mais recente.


Sexta-feira – 03-11-2023

Presença/ausência

Algumas pessoas no mesmo lugar. E contando com o mesmo lugar sem elas. Elas, por um lado, espectrais. O lugar, por outro, espectral.

Degraus filosóficos…

*

Referências

António Gomes Ferreira, Dicionário de Latim-Português, Porto, Porto Editora, (s/d). 

Byung-Chul Han, No Enxame — reflexões sobre o digital, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Rel. D’Água, 2016.

Fernando Pessoa, Poemas Dramáticos, Lisboa, Ática, 1966.

Franz Kafka, Os melhores contos de Kafka, trad., A. Serra lopes, pref. Armando Ventura Ferreira, Lisboa, Arcádia, 1966. 

Jean Baudrillard, Las estrategias fatales, trad. J. JordáBarcelona, Anagrama, 1984.

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido – A fugitiva – Albertine desaparecida, vol. VI, trad. Pedro Tamen, Lisboa, Relógio D’Água, 2004.




Luís de Barreiros Tavares
nasceu em Lisboa em 1962 e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa (2007). Autor de alguns livros, entre outros: O Acto de Escrita de Fernando Pessoa; Em Roda Livre, com Eduardo Lourenço; Sulcos, com Jean-Luc Nancy; 5 de Orpheu (Almada – Amadeo – Pessoa – Santa Rita Pintor – Sá-Carneiro). Colaborador regular em várias revistas (“Nova Águia”, “Caliban”, “Triplov”). Já publicou nas revistas “Pessoa Plural”, “A Ideia”, “Philosophy@Lisbon”, “Comunicação e Linguagens”, entre outras. Vice-director da revista “Nova Águia”. Membro do Conselho Consultivo do Movimento Internacional Lusófono (MIL). Editor das edições-vídeo “Passante”. Mantém com menos frequência a actividade de artista plástico. Já deu umas aulas. Responsável pelo espólio do poeta Manoel Tavares Rodrigues-Leal.