O felino na sala, crônica de Renata Meffe

 por Renata Meffe__ 



Foto de Bogdan Farca na Unsplash



     Chamem os bombeiros! Tem um felino solto dentro da minha casa. Dotado de garras poderosas e dentes afiadíssimos, ele é rápido como o pânico que se apodera de mim cada vez que o bicho resolve me olhar fixamente. Não é olhar de curiosidade, muito menos de acolhimento. Pode não chegar a ser de ameaça, mas no fundo da frieza embutida naquele azul, percebo julgamento. Tem um felino me julgando no meio da sala. E daí para a condenação é um pulo…do gato. 


Não existem diferenças genéticas entre o gato feral e o gato doméstico e este indivíduo em particular é o que se conhece por gato alongado: há pouco tempo vivia no mato, até que um dia chegou aqui atrás de uma tigela de leite e foi ficando. Agora, o animal veloz, de garras poderosas, dentes afiadíssimos e passado desconhecido me lança o olhar de despiedade.  


 Às vezes, sou puro amor pelo felino aqui de casa, principalmente quando o observo dormir, geralmente ao som do violão que meu companheiro toca no quarto ao lado. Reina uma paz. O gatinho, mesmo cochilando, ronrona estimulado por minhas carícias e o único arranhado que me vem à mente é mesmo o dos dedos nas cordas do instrumento. Em outros momentos, contudo, quando o gato me encara assim, como se estivesse me enxergando por detrás da pele, da máscara, do tempo… é melhor discar 193.


Não à toa, o filósofo viajadão (perdão pela redundância) Jacques Derrida planteou várias indagações ao ver-se nu diante do olhar do seu gato. Também me faço perguntas cada vez que este animal me olha de modo inquietante, esteja eu pelada ou vestida. A principal delas é: quanto tempo tardariam em encontrar meu corpo sem vida se neste instante ele decide saltar sobre minha jugular?


O olhar de superioridade com pitadas de desprezo que Reven me dedica não deve ser nada pessoal. Ou melhor, nada individual, porque desconfio que o felino me encare assim justamente porque sou uma pessoa. A maneira desajeitada de me mexer e o jeito aparvalhado com que me desloco no espaço são típicos de seres humanos. Para um gato, cujos gestos se caracterizam pela precisão e cujos movimentos exalam delicadeza, o espetáculo vulgar da estabanada primata talvez provoque um sentimento de vergonha alheia. 


Fora a aflição que ele deve experimentar ao me ver passar dias golpeando teclas e noites diante de telas, me debatendo com as notícias e os espelhos das redes sociais. Deve ser uma angústia parecida com a que toma conta de mim quando observo o joão-de-barro na garagem. Mesmo podendo voar, o pássaro fica horas batendo a cabeça no vidro do carro, confundido diante do próprio reflexo. Vai lá fora tomar um ar e assustar o joão-de-barro pra ele sair da frente do para-brisa, Reventito, e vê se para de me olhar assim!






Renata Meffe - Jornalista, fotógrafa, documentarista, tradutora, professora & cronista. Sim, somente atividades altamente rentáveis. Escrevo ensaios que jamais estreiam.