O rosto do tempo, crônica de Joaquim Cesário de Mello

 por Joaquim Cesário de Mello___



Foto de Jr Korpa na Unsplash



        Eu hoje vi o tempo. Ele estava na superfície das coisas findas: as demoradas, as tardias, as breves e as apressadas, as longas, as precoces, as morosas, as decorrentes e as ligeiras. 


     Vi o tempo escapado dos relógios e dos anuários, que corre afastado dos horóscopos e dos jornais, dos números e dos ponteiros, o tempo oculto dos calendários, translúcido e diáfano como são os átomos e os segundos.


      Vi o tempo na porta descascada do quarto, na mancha de mofo na parede que ali ontem não estava, na rua esburacada de chuvas e tráfegos, no choro da filha recém-nascida do vizinho, e no rastro de pó de madeira deixado pelos cupins. E ele estava tão guardado nas caixas onde conservo retratos e que ali me disfarço de furtivas imortalidades ainda não roídas pelas traças do tempo.


      Vi o tempo no homem comendo melancia enquanto dobrava a esquina, e também na mosca que mora na cozinha e estava crescendo. Vi o tempo sendo carregado nas folhas que as formigas levam aos formigueiros, nas nuvens se decompondo ao vento, no murchar gradual dos crisântemos, no marrom das bananas na fruteira, nos besouros-de-maio que os peixes se alimentam. 


      Vi o tempo no espelho do banheiro. Ele estava ressecado, flácido e enrugado, e eu estava nele aos poucos desaparecendo como o escuro dos poucos cabelos que ainda me restaram e que agora estão ralos, encanecidos e reduzidos de melanina. E assim como Cecília Meireles, este rosto não era ontem assim tão árido, fatigado, nem meus olhos estavam engordurados de dias e as pálpebras arriadas como se estivessem amargas, tristes e vazias. Também não me dei por esta transição e provisória mudança.


Vi o tempo na latência do mundo, espremido no exíguo espaço entre o antes e o depois. Ele tem o cheiro amendoado dos livros velhos e o sabor azedo do leite esquecido na geladeira. Eu o vejo no silêncio mastigante das traças e no toque endurecido e enferrujado das tesouras. O tempo é líquido, constante e fluido - se fosse feito de água seria um rio a desaguar em um oceano vazado, abissal e seco.


      Vi o tempo se prolongando na memória, multiplicando-se de passados colados nas amuradas mais remotas das minhas entranhas. Um tempo inchado, abundante e dilatado como uma bolha a se agigantar até o espinho do meu último momento. Este é o tempo que vive a se infiltrar em meus repentinos presentes. 


      Eu hoje vi o tempo. Ele bateu no vidro da janela e me acordou.



Joaquim Cesário de Mello - Psicólogo, psicoterapeuta e professor universitário. Escritor e poeta, participou de várias antologias literárias, entre elas Nouveaux Brésils Fin de Sciècle (Universidade de Toulouse, França, 2000), Poesia Viva do Recife (CEPE, 1996), Cronistas de Pernambuco (Carpe Diem, 2010), Poesia na Escola (Palavra & Arte, 2021). Em final da década de 80 participou do Movimento de Escritores Independentes e foi cronista do Encarte Cultural do Jornal do Commercio (PE) entre 1998-2002. Autor dos livros Dialética Terapeuta (Litoral, 2003), A Alma Humana (Labrador, 2018), A Psicologia nos Ditados Populares (Labrador, 2020), A Vida Como Um Espanto (Labrador, 2022) e No Cemitério das Nuvens (Folheando, 2022)