Oito poemas inéditos e um vídeo de Manoel Tavares Rodrigues-Leal


por Manoel Tavares Rodrigues-Leal__






“Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.”

Carlos Drummond de Andrade (inscrição no caderno Mar de Ausência, 1980, por M.T.R.-Leal)


I


(Que poema possível?)


É precário e vertical pedra,

e progride tragicamente em o poeta

que se busca e rebusca. Madrugada alta, metal de merda…


Cintra – 6-2-77 – capítulo II “A simplificação” – O autor opta pela grafia “Cintra” em vez de “Sintra”


II


Madruga amor, sim, em meu nocturno regaço,

quando em Cintra medito… oh amor esparso

em o espaço errante das ruas sob o metal ermo e infinito da lua…

Oh noite nupcial, oh nua metamorfose da minha alma tão tua…


Não, onde irrompes despida, prata e pranto,

e o demais é interrompido ou nulo, não. Que pânico porém tanto

tem o rumor eterno e manso, se furtivos brilhos, e as ruínas de Fevereiro,

se apátrida paz, meço ou começo? E, em o fluir do comboio, para Cintra, o derradeiro


Adeus do que é rugosa superfície de aventura, escassa e nada,

e o cavalo alado e amado do vento que jamais se envilece…

Oh Cintra coeva, onde vacilo de puro espanto, que mulher me povoa e merece,


Quando a penumbra húmida de pálpebras se fecha, nome ou noite, e abandonada

jaz beleza profusa, matemática de mitos, tão cerce, tão cerce,

que se enlouquece em as sílabas de suor das vogais vegetais… e, então, Cintra, apetece…


Cintra – 7-2-77 – (ao Miguel [sobrinho Miguel Gonçalo] e à São) – do capítulo IV “(Re)aparição do poema” 






                                          

III


À esquiva e nobre atitude de espírito jamais aspirou, senão ao jogo do possível…

Eis minha precária sala vazia: onde escrevo nuamente…

Jaz algo de heráldico e genealógico: a brancura ou a bruma de Cintra:

Meu bem merece merda, mijo e um beijo de beleza, meditando-o. Acordado, eu. Nós tão ausentes…


Cintra – 7-2-77 – do capítulo IV “(Re)aparição do poema”


IV


Elogio uma antiga e longínqua rapariga,

que anunciava as noites com sal, saliva e néon nocturno.


Que distância, meu Deus, irrecusável… e que umbigo.

Ou elo, a ela, vela ainda navegando, me liga…


Lx. – Cintra – 7-2-77 – do capítulo [V] “Em louvor de uma mulher” (à Ana)


V


Que brusca beleza interrompida em intervalo e bruma…

Nem eu sei já… em a meditação dos deuses, arde minha vida vazia…

Ou prenhe da alvura da alegria e espesso pranto. Algo, algo que se gera e principia…


Cintra – Lx. – 8-2-77 – (para a Maria Luísa) – do capítulo [V] “Em louvor de uma mulher” (à Ana)


VI


Que vegetal mulher se debruça, cambiantes e brilhos de brancura…

Nem sei roubar-te a neblina de um beijo cheio de loucura…

Sim, meu amor, medito e abandono-me ao barco breve dos teus abraços…

Acredito em ti, o resto é bastante e peregrina busca ou adoecidos passos.


Lx. – Cintra – 9-2-77 – do capítulo [V] “Em louvor de uma mulher” (à Ana)




VII


A palavra visita-nos, imprevista,

quando impregnada do suor de rosas,

quando vem do vento que chora sobre a hera do ventre da mulher.

A palavra visita-nos, porém, nua,

se ermas ruínas de pensamento ousas,

se sábio exílio de mar, ou luxúria de musgo, sabes, e quem, de música antiga, me quer?


Cintra – 9-2-77 – do capítulo [VI] “A visitação da palavra”


VIII


Como loucura se devora, entre parêntesis e demoníaco orgasmo…

E na subtil floresta de beleza sempre coube o encanto cativo da loucura.

Poesia pura,

a que provém de dispersas palavras que lavras: Manoel me chamo.


Lx. – 15-2-77 – do capítulo [VI] “A visitação da palavra”




“Eis o retrato de Rimbaud, em Cintra, em 1977: / epitáfio para uma lapidar beleza, na Pensão Bristol…” M. T. R.-Leal, Do Ócio e Meditação em Cintra


* Coligidos do caderno Do Ócio e Meditação em Cintra por Luís de Barreiros Tavares






Manoel Tavares Rodrigues-Leal (Lisboa, 1941-2016) foi aluno das Faculdades de Direito de Lisboa e de Coimbra, frequentando até aos 5.º e último ano, mas não concluindo. Em jovem conviveu com Herberto Helder no café Monte Carlo, frequentando com ele “as festas meio clandestinas, as parties de Lisboa dos anos 60 e princípios de 70”. Nesses anos conviveu também com Gastão Cruz, Maria Velho da Costa, José Sebag, entre outros. O seu último emprego foi na Biblioteca Nacional, onde trabalhou durante longos anos (“a minha chefe deixava-me sair mais cedo para acabar o meu primeiro livro, A Duração da Eternidade”). Publicou, a partir de 2007, cinco livros de poesia de edição de autor. As suas últimas semanas de vida foram muito trágicas, morrendo absolutamente só.