por Adriane Garcia__
A relação entre música e memória (individual e coletiva) tem sido cada vez mais estudada na neurociência, em áreas das ciências humanas e sociais, como a etnomusicologia. Por experiência pessoal, é possível para cada um de nós atestar o quanto uma música acessa lembranças guardadas, esquecidas ou mesmo sensações que não conseguimos explicar muito bem. Essas sensações podem ser as mais diversas, do prazer à angústia, mas o fato é que determinada música toca de modo singular a história do sujeito.
A memória, sendo plástica, aparece articulada ao presente. Se vem, por exemplo, uma música em nossa cabeça, vem por algo do presente que nos leva a essa memória musical: posso ter ouvido agora a melodia ou algo que se lhe pareça, ter visto um trecho da letra escrito em algum lugar, uma imagem, um evento que evoque a música. Mais além, a música então evocada suscita a lembrança de sua circunstância, ou nos coloca em uma determinada época, com determinadas pessoas. Uma memória vai puxando a outra, desencadeando associações as mais diversas. A música faz uma função de chave de resgate, em que a memória vai dando conta de uma “identidade sonoro-musical” composta pelo nosso repertório histórico. Não só histórico pessoal, mas histórico social. Mário de Andrade, em “Evolução social da música no Brasil”, afirma que “a música é a mais coletiva das artes”; assim, partilhamos com muitos outros nosso repertório.
A música – criação e recepção – envolve processos psíquicos do consciente e do inconsciente, sendo que aquilo que ela comunica, como objeto artístico, ultrapassa a subjetividade de quem a compôs e alcança a subjetividade outra para conservar ou para contestar, jogar na tradição ou na mudança. O sujeito tocado pela música utiliza essa expressão da alteridade para se identificar, se expressar, agora com suas próprias nuances. É isso que Taciana de Oliveira consegue em seu Coisa perdida, livro de poesia, dividido em quatro partes, Cronologia, Lado A, Lado B, e Bônus track, fazendo um balanço da “identidade-sonoro-musical” de uma persona lírica que pontua suas tragédias, seus pequenos sucessos, suas angústias e amores por meio da memória musical.
Em Cronologia, a leitora e o leitor recebem um arco de datas que situa a persona lírica em um dado momento da vida; aquilo que se fixou a ponto de ser lembrado. A cada época, uma música pode comparecer, trilha sonora do evento, marca de um tempo em comum que foi apropriada para compor a identidade. Em Coisa perdida, a persona lírica identifica a trilha sonora da própria vida. O livro começa com a tragédia do abandono, uma maternagem exercida por outra pessoa que não a mãe, o abandono pelo pai e a vivência do filicídio – que na conceituação do psicanalista Arnaldo Rascovsky é entendido como “as agressões e destruições parciais ou totais infligidas pelos pais aos seus próprios filhos” – a violência doméstica contra crianças, a angústia da orfandade. Trata-se de uma subjetividade que para sobreviver aprende a ser invisível, processo que pode ser chamado de cisão (ou clivagem) e que ficou descrito em um poema de Charles Bukowski, chamado O pássaro azul. Também em Taciana Oliveira, o processo de cisão ficou tão bem registrado: “Se a noite é tão sem graça/ sem afagos e amores incontidos. / A menina vem à porta/ e me desperta no abismo”. Se aquilo em mim que sou (e que se manifesta na espontaneidade) não pode ser, eu escondo, eu me reparto em duas, eu guardo aquela em mim que é meu “verdadeiro self”, meu verdadeiro tesouro que me colocaria em perigo se eu o mostrasse.
Da infância à adolescência, os dramas do corpo em crescimento, a menstruação, o desenvolvimento dos traumas, as músicas registrando as fases. A menina vai ganhando consciência política, nasce um olhar do solitário para o solidário, a juventude comparece entre a mãe que não se redimiu e o pai que tardiamente se apresentou. Com projetos profissionais frustrados, a persona lírica se descobre inserida em um problema maior chamado Brasil, chega-se na fatídica eleição de 2018 e nas consequências dessa escolha nacional.
Em Poemas, cigarros e polaroides (Lado a) o sentimento mais marcante é o da nostalgia, embora seja mais a saudade do que não foi do que do fato vivido. A infância se reafirma como terreno de sofrimento e privações, mas há uma força que insiste na vida, que “vinga”, utilizando a expressão popular que ensina que “vingar” é sinônimo de viver; o que não morreu, vingou. A menina vinga, mas perdida, sem orientação. No livro Alice no País das Maravilhas, Lewis Carroll constrói um diálogo em que o Gato Cheshire avisa: "Se você não sabe para onde ir, qualquer caminho serve". É dessa falta de orientação que Taciana Oliveira nos fala no poema Vinte e oito: “Até hoje procuro por mim” e em Rima tola: “Sem / os remos, / o barco é do mar.” A persona lírica não pode apresentar segurança nos seus passos porque seus vocábulos mais essenciais e sua simbologia estão trocados: mãe não expressa acolhimento nem adoção; pai não expressa proteção, ao contrário, é a filha que procura o pai; circo, essa palavra ligada à alegria, vai se revestir de uma memória causal de tragédias. Sobrará a culpa que cerca as crianças vítimas de abusos vários, que não podendo culpar o adulto (idealizado), procura em si a explicação para o desamor. Em Memória, a poeta nos dá esses versos: “(...) correr para o castigo/ apanhar com um sorriso e devolver/ o perdão para o carrasco”.
Ao lado da fuga de um território infeliz, a palavra surge como sublimação: “faço da ofensa poesia”. Nota-se o desenvolvimento de uma capacidade de elaborar todo o vivido e isso se expande para uma visão crítica sobre o mundo, em particular, nessa seção do livro, da gentrificação e da transformação de uma cidade que surge em detrimento de uma que morre sem deixar resquícios, gerando apagamento e negando a importância do passado.
Em Lado B, Taciana Oliveira abre a sessão com o poema IV “Um poema por dia/ disse Maria/ e morreu”. A poesia registra o seu lugar para a tragédia, a frustração, a expectativa versus realidade. Em A morta, uma persona lírica desabafa contra si aquilo que provavelmente queria dizer do outro, mas foi introjetado (o ódio ao outro pode se tornar auto-ódio), acrescentando um sentimento recorrente de não ter nada, o que também ocorre no poema Happyness. Se em Lado A, a poesia é sublimação, aqui a palavra aparece como resposta e reação na cadeia de relações e a música é um lenitivo para a dor. Uma tênue esperança sustenta o equilíbrio. A menina (a guardada) estenderá a mão.
Em Bônus track, a música comparece como forma de gritar, a analogia é “gritar, gritar, gritar/ como guitarra elétrica”; a música não deixa esquecer nem quando se quer esquecer. “Os vaga-lumes estão mortos” e a memória infantil de encanto é trocada pela constatação do desencanto. Revê-se a fantasia para chegar ao cerne das coisas. O teste de realidade desemboca em duras constatações, o país é um caso de saúde mental em “Recalque”. Taciana Oliveira utiliza o antilírico como resposta a uma sociedade antilírica. As balas perdidas, a violência policial, o terrorismo de estado, tudo isso participa de versos que assumem o risco de uma poesia que denuncia, como em A rasura do corte. Bônus Track é a parte do livro que traz a política com mais centralidade.
Coisa perdida traz no conjunto um tom melancólico. A persona lírica estetiza os sentimentos do eu, dramatizando o mundo, pela poesia, pelo artefato chamado poema. Os fatos podem coincidir ou não com a vivência da poeta, mas ao transformá-los em poesia, a persona lírica tira-os de um lugar puramente confessional, é o “fingidor” de Pessoa que entra em ação.
Há algumas recorrências interessantes na poesia trabalhada em Coisa perdida. A palavra chuva, associada à alegria e plenitude se transforma quase sempre em simbologia para tristeza: em Vinte e oito, “quando menina bebi da chuva”; em O jogo da amarelinha, “mas desconfio que/ anjos dancem na chuva”; em III, “Até quando essa água vai/ escorrer pelos meus olhos?”; em Memória, “memória é chuva no escuro de 1977”; “chove e não sei mais chorar” (está em 1976-1977). Outra recorrência é o vocábulo “gaveta”. Em 1996-2011, ele aparece como “o fracasso não se esconde nas gavetas”, lembrando no que pode dar o arriscado conselho de Sérgio Sampaio “Um livro de poesia na gaveta não adianta nada”; em Portrait aparece como “o que eu não tenho mais/ o vento empurrou para dentro das gavetas”; em Memória, “memória é uma gaveta de entulhos”. Ainda interessante a recorrência da simbologia para “primavera”, como um tempo bom que não acontece nunca (a mãe) ou acontece tarde demais (o pai).
Em Coisa perdida, os poemas trazem uma carga imagética grande. Somada a uma logopeia muito bem amarrada, há a criação de imagens muito bonitas que nos fazem ver cenas fixas ou móveis. Nesse sentido há um quê de fotografia e de cinema na poesia de Taciana Oliveira. O poema Porto é um exemplo da força das imagens em sua poesia; outro exemplo, o poema Blue e vários outros que se parecem com tomadas cinematográficas silenciosas, como MCMLXX. A música não só é colocada de forma aberta, presença na cronologia, como também aparece na própria formação dos versos para além de citações; em Ladainha, por exemplo, a forma lembra muito “Meu bem, meu mal”, de Caetano Veloso, letra que se imortalizou na voz de Gal Costa. A sonoridade dos versos de Taciana Oliveira é conseguida com o uso de aliterações e assonâncias muito bem distribuídas dentro do poema, um ótimo e delicioso exemplo disso está em Anatomia de um vestido, a se reparar no uso de encontros consonantais e os sons dos “erres” em Carta de navegação. A abundância de paroxítonas no final de quase todos os versos de A fila anda também é um ótimo exemplo melódico em Coisa perdida. Quanto ao ritmo, em geral, Taciana Oliveira usa o corte para versos curtos, com bastante regularidade. Há ainda figuras de linguagem como paradoxos: “Meu grande amor morreu pequeno”. O uso não raro do antilírico, como em A César o que é de césar, denota uma escolha estética para dizer da ética: “Arrisco-me a não glorificar a bosta”.
Coisa perdida traz uma poesia profunda, espécie de inventário que acorda o passado para fazer sua elaboração, trazer à tona seus efeitos, suas explicações e, assim, modificar o passado (sua interpretação), que agora não poderá mais ser olhado como o foi enquanto seu nome era presente. O passado, finalmente como passado, pode agora nos dar coragem para ouvir, sem grandes agonias (ou paixão) e até algum prazer, aquela música.
Porto
O mar me olhou nos olhos,
tenho fama de difícil,
me afogo fácil.
Sei tão pouco de tudo.
Sei tão pouco de tantos.
No horizonte,
os barcos navegam
e Deus não escreve o fim.
Anatomia de um vestido
Extraí alguns dentes.
A vesícula biliar
dorme feliz no formol.
O útero descansa na paz
de terras estrangeiras.
Há um poema nascente
na cartografia dos sonhos.
Tatuei o infinito
nos pronomes do passado
quando não fui feliz
pelo que foi negado.
Alma mater
Oferecer ao sol
os ossos e as mágoas,
saber das horas
que o forno aquecerá o pão.
Do que resta
a resposta para coisas inúteis:
alimentar os peixes,
retirar o pó,
e dançar
solenemente
contra o tempo.
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Coisa perdida
Taciana Oliveira
Poesia
Mirada
2023
Taciana Oliveira - Natural de Recife (PE), Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector - A Descoberta do Mundo” Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)