Meu Querido Facebook..., artigo de Luís de Barreiros Tavares

 por Luís de Barreiros Tavares_

                 


“Vivo do que os outros não sabem sobre mim” Peter Handke


Advertência 
— As considerações críticas desfavoráveis sobre o Facebook presentes nestes apontamentos não têm em conta algumas excepções e espaços onde poderá haver momentos de reflexão e de partilha proveitosos como em muitas outras plataformas e redes na Net. No entanto, há sempre uma impressão de amálgama.

Quinta-feira — 04/01/2024

Há no Facebook um exacerbar aberrante. Algumas observações que iremos enunciar ilustram isso. Não quer dizer que tudo seja assim, no Facebook…

O Facebook é, por vezes, obsceno… é quase tudo tão dado — e gratuito—, tão lançado… é de uma incontinência publicitária gritante…

O Facebook é um grito abismal…



                                                       

O Facebook suga… aligeira tudo, alisa. Ele aligeira a palavra e a imagem ao ponto de nelas transitarmos como de coisa em coisa… 

Apenas reflexos: as coisas, os posts são reflexos uns dos outros, e nós também…

Eis a grande dispersão, ao ponto de imperar a desatenção. Já ninguém se detém e pensa mais um pouco.

É uma enxurrada de coisas – para não dizer outra coisa –, a tal ponto que somos totalmente imersos na desatenção…

Passa por nós um Matisse, sem mais nem menos; posta-se um Tàpies e é meia bola e força; lemos um poema de Celan como quem não tem mais nada que fazer; avistamos um frame de “Pierrot le Fou”, de Godard, e clicamos um “gosto”, ou comentamos “adoro”, etc., etc., etc… Passamos por isso como quem se assoa… Eis a facilidade do Facebook…

Tudo isto com o verniz das cores e das luzes digitais que a tudo se sobrepõem…

«O gosto [like] invade o mundo», diz Byung-Chul Han em Não-Coisas (Trad. Ana Falcão Bastos, Relógio D’Água, 2022).

O Facebook é um depósito de publicações desenfreadas… publica-se num dia e, passado um instante, o publicado des-publica-se… há que estar sempre em linha… numa re-ligação permanente…

Dissipa-se a intensidade da palavra e da imagem. Ali pouco ou nada se inscreve…

Eis o grande não-arquivo!…

É a desconsideração total do que obedece a determinados critérios que nada têm a ver com o estar vidrado e cego no ecrã de luzes encantatórias…

Sábado — 06/01/2024

O Facebook, na generalidade, é um Bazar. O Bazar é uma rua de lojas de variados artigos de tradição médio-oriental. Mas no Bazar de rua vamos passando pelas coisas. No Facebook, são as coisas que passam, ou desfilam. Ou fazemo-las passar incontidamente. Os produtos desfilam numa romaria, ininterruptamente. Tal é este fantástico passatempo! Os produtos são as postagens, as publicações.

O Facebook é um Bazar de artigos (pessoas e coisas) em contínua troca, cheios de cores e luzes.

«A ligação digital à rede permite a avaliação total e a iluminação total de uma pessoa. Tendo em conta o risco que encerra a recolha de dados pessoais, hoje exige-se que a política restrinja de modo considerável esta prática. A Schufa e outras empresas de scoring também produzem um efeito discriminatório. A avaliação económica de uma pessoa contradiz a ideia de dignidade humana. Ninguém deveria ser degradado e posto ao nível de um objecto de avaliação algorítmica.» (Byung-Chul Han, Capitalismo e Pulsão de Morte, Trad. Ana Falcão Bastos, 2023, Relógio D’Água, p. 29)

Qualquer coisa de mercado virtual. Nele, as mercadorias concernem tanto o que se publica como quem publica.

A «luz bonita das selfies» invade o Facebook: «As selfies são superfícies lisas que, por um breve período, colocam o eu vazio sob uma luz bonita», escreve Han, op. cit, p. 51. 

Numa subtil ironia ao nome «Facebook» — que não nos cansamos aqui de registar, e esperemos que até à exaustão —, bem como à invasão de selfies e fotografias familiares, Byung-Chul Han escreve (op. cit., p. 54): «A era do Facebook transforma o rosto humano numa face completamente absorvida pelo seu valor de exposição. A face é o rosto exposto sem aquela aura do olhar. É a forma de mercadoria do rosto humano. Há uma interioridade, uma reserva, uma distanciação inerentes ao olhar. Portanto, ele não pode ser exibido. É preciso destruí-lo para que o rosto se converta numa mercadoria e assuma a forma de uma face

Terça-feira — 09/01/2024

O Facebook é um autêntico festival de variedades todos os dias. Ele tem um efeito de volatilização a cada hora, a cada dia, a cada minuto! A passagem dos posts dá-nos a ilusão da passagem do tempo num aparente compasso com o mesmo enquanto dura, demora e é presente. Mas é uma ilusão da demora, e é um artifício instalado e pronto a servir. É forjado gratuitamente. O Facebook é grátis…

Mas o chamado dataísmo (Big Data), abrangendo o fornecimento torrencial de dados nossos a partir do Facebook, etc., contribui para um grande mercado. Mercado psíquico e também do capital!

A psicopolítica anda por aqui…

O mundo dos media e das redes não passa de um imenso conjunto de espectros que veio substituir o mundo dos espectros e da morte – desde os mais arcaicos – quando estes estavam verdadeiramente inscritos no real. Estes novos espectros disfarçam ou dissimulam a nossa perplexidade ante a realidade: o espanto (com o apelo filosófico). A realidade como presente é, ao mesmo tempo, fugidia e fugitiva para o desconhecido que é o da interrogação, ou das grandes interrogações sobre a vida e a morte. Mas o nosso tempo voraz, de hoje, foge a essa fuga.

A realidade também guarda. Ela é o lugar do genuíno medo das grandes interrogações. As luzes e as cores digitais e das novas Tv’s obliteram, enquanto portadoras de espectros alegres (cheios de cor e luz — as «plasmas» encantatórias, etc.), as grandes interrogações, os outros espectros! As guerras, acompanhadas ao minuto, a par e passo, entram em palcos e cenários de contadores de histórias e de fogo-de-vista. Elas, as guerras, estão bem isoladas, para as podermos acompanhar como narrativas.

O Facebook é um sortido de tal maneira inebriante, no plano da diversão e distracção, que se torna uma fácil zona de conforto que dissimula muita coisa. O passatempo do Facebook também desempenha um papel importante neste enredo.

O Facebook é um sortido de imagens e cores, um divertissement de companhia com milhões de grupúsculos…



Que grande entretenimento (entertainment!), em geral. Claro que há bons momentos e boas coisas. Mas a força desses momentos e boas coisas tende a dissipar-se no meio da correria aqui e ali das publicações. O Facebook é uma grande correria. Ver, ver e mais ver! Até à poeira para os olhos…

A inscrição esbate-se no momento.

Há um excesso de exposição.

Viva o Facebook!

Domingo — 14/01/2024

Post scriptum





Sobre o pensamento de Byung-Chul Han


Sim, continuamos no âmbito do espectáculo. Que espectáculo? É necessário pensar a realidade à luz dos nossos dias. Luz que, paradoxalmente, não deixa de ser ofuscante, com o espectáculo no máximo da sua expressão nos nossos ecrãs.

Byung-Chul Han é um acérrimo crítico do actual estado de coisas, sobretudo ao nível dos contextos das redes, do digital e da psicopolítica. É um filósofo interessante que tenho vindo a acompanhar. Tem uma escrita clara, uma observação aguda em muitos dos seus textos. Mas chega a ser um tanto light, digamos assim. A influência oriental do espírito budista zen perpassa o seu pensamento, o que me agrada particularmente. Todavia, para além de uma certa simplificação, como, por exemplo, o binómio positividade/negatividade enquanto grelha de análise, bem como a preferência pelas frases muito curtas, com a desvantagem de perder, por vezes, um desenrolar do pensamento em múltiplos matizes, tende também, nas suas reflexões, a uma espécie de parasitagem do que critica. Coisa que aconteceu, de um certo modo, com Jean Baudrillard (que Han frequentemente cita e comenta), Paul Virilio, entre outros, o que não impede a agudeza das suas reflexões.


                                         

Explicitando melhor, talvez Byung-Chul Han devesse dar mais atenção a Guy Debord, no seu livro A Sociedade do Espectáculo, publicado em 1967 (Trad. Fernando Alves e Afonso Monteiro, Antígona, 2012). Eis a seguinte passagem (pp. 11–12):

«Ao analisar o espectáculo, fala-se em certa medida com a própria linguagem do espectacular, no sentido em que se pisa o terreno metodológico desta sociedade, que se expressa no espectáculo. Mas o espectáculo não é outra coisa senão o sentido da prática total de uma formação económico-social, o seu emprego do tempo. É o momento histórico que nos contém.» 






Luís de Barreiros Tavares nasceu em Lisboa em 1962 e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa (2007). Autor de alguns livros, entre outros: O Acto de Escrita de Fernando Pessoa; Em Roda Livre, com Eduardo Lourenço; Sulcos, com Jean-Luc Nancy; 5 de Orpheu (Almada – Amadeo – Pessoa – Santa Rita Pintor – Sá-Carneiro). Colaborador regular em várias revistas (“Nova Águia”, “Caliban”, “Triplov”). Iniciou há pouco tempo publicações na revista brasileira “Mirada”. Já publicou nas revistas “Pessoa Plural”, “A Ideia”, “Philosophy@Lisbon”, “Comunicação e Linguagens”, entre outras. Vice-director da revista “Nova Águia”. Membro do Conselho Consultivo do Movimento Internacional Lusófono (MIL). Editor das edições-vídeo “Passante”. Mantém com menos frequência a actividade de artista plástico. Já deu umas aulas. Responsável pelo espólio do poeta Manoel Tavares Rodrigues-Leal.