por Adriane Garcia__
O poema que dá nome ao livro, O guru, revela o caminho satírico, crítico que denuncia a busca da poesia como algo que supostamente poderia ser adquirido no mercado, pois a própria poesia pode se perder em uma sociedade em que o mercado é que a definirá. Dessa forma, o poeta faz um livro cujo principal personagem, o poeta, está perdido. O guru mostra toda a carga de ironia que é colocada no livro, o poeta satiriza o poeta-narrador mas também o meio literário, também o sistema comercial que se implanta em torno da poesia em detrimento dela mesma. Um sistema eletivo nada meritocrático, mas que carrega o discurso da meritocracia e todos os vícios da sociedade em que se inclui. Dessa constatação, o poeta avança, chegando à crítica da religião igualmente comércio, dogma, espécie de fanatismo para tamponar uma incompetência – de escrever – de viver. O personagem – que procura o guru porque quer a melhor distribuição das benesses do sucesso literário – tanto é resistente a aprender, quanto parece, está protegendo o que tem de mais genuíno ao não conseguir se submeter a sistema algum, frequentando todos eles de maneira precária. As referências vão da literatura à filosofia, com o pé em uma poesia do cotidiano que nos deixa muito próximos do narrador. É o poeta que procura uma oficina de poesia, mas assim como é resistente a religiões – e a analogia é excelente – sua poesia também foge a dogmas. Há um eu-lírico tanto sem condescendência com o sistema, quanto consigo mesmo: “(...) por muito tempo/ cultivei o demônio/ de Sócrates/ como a melhor resposta./ Hoje, contudo, sei/ que agir assim/ é uma forma/ de defesa”. Sobre oficinas de escrita, ele ainda constata que existem poetas e aspirantes a poetas, e que muito disso alimenta todo tipo de charlatanismo no meio literário. Não é à toa que nesse poema de fôlego, nove páginas sem perder o ritmo, sem perder o fio da meada, André Luiz Pinto recorre às analogias com a religião, onde o charlatanismo grassa.
Impera na coletânea o cômico, a ironia refinada e o sarcasmo. Há um humor melancólico, inteligente e não se sabe até onde o poeta se confunde com seu alter ego, seu personagem, estratégia poética eficiente muito utilizada, por exemplo, em Charles Bukowski. Após O guru, os poemas continuam com um tom que, na maioria das vezes, é dado por um eu-lírico desesperançado. Sobre a esperança, o poeta diz: “ela é o pior/ que nos reserva/ e o que temos de pior”. Os versos de André Luiz Pinto retratam as opressões diárias, a falta de recursos materiais, a luta pelo pão de cada dia, as religiões feitas para o não-gozo, a poesia que, ao contrário do que se gostaria dela, não pode fornecer nem o pão, nem as respostas, certezas, mas dúvidas, mais dúvidas. É uma poesia que utiliza muitas inversões (denunciando a realidade: perversa e inversa), como no poema Da central. Ali é o vendedor que segurando sua caixa de mercadorias grita quando passa o policial: “– Pega ladrão!”. Também a imagem da encruzilhada é uma recorrência, frequentemente o poeta está em um lugar de decisões e indecisões sobre qual caminho tomar.
No poema Dia, há um vagar no gesto, na observação, na atenção tanto do cenário quanto das evocações internas. Em Ao magistrado com amor, o poeta ironiza a face kafkiana da justiça com seu vocabulário e leis labirínticos, sua burocracia impeditiva do direito à própria justiça; sua prática nepótica, fisiocrata e seus meios ilícitos de amealhar mais poder. Em “Nada mais terrível que criança” o poeta nos lembra da interpretação freudiana “sua majestade o bebê”. Quando o eu-lírico privilegia a paternidade como tema, “Para Tales”, os poemas ganham a delicadeza, o universo amoroso e falam de uma herança dada em vida: as letras, a língua materna que também pode ser língua paterna.
Há um tanto de surpresa nos poemas de André Luiz Pinto, não se sabe onde os poemas vão chegar e essas finalizações de ideias são iluminadoras. Há vários níveis de construção do texto, escolhas certeiras de símbolos, muito bem disfarçados, como se ali estivessem apenas compondo cenas, mas levam a novas leituras: “bebericando não sei/ se café ou chá./ Seja chá, mais/ apropriado ao simbolismo/ que procuro.” A composição dos poemas raramente usa mais de uma estrofe, o que revela um ritmo de pausas menores, podendo a leitura contar apenas com a pausa do verso e/ou a indicada na pontuação. Também é recorrente o uso de uma disposição gráfica em que um verso começa afastado da margem do anterior, sendo a maioria dos poemas com dezenas de versos sem divisão de estrofes. O ritmo, assim, é predisposto à leitura em voz alta, às pausas, ao tom de conversa. Ao mesmo tempo, os versos são bem cadenciados, cortados, em geral, no verso curto, o que no conjunto, dado a sua regularidade, harmoniza o poema. O vocabulário simples, com preferência pelas palavras de uso contemporâneo e dilemas atuais, aproximam a poesia dos falantes do seu tempo. O guru é um livro existencial e metalinguístico, a poesia é o cerne das questões porque se confunde com a própria vida; o eu-lírico está comprometido até o pescoço não só com a busca da poesia, mas com o compromisso de protegê-la: o seu difícil e invisível tesouro.
RELIGIOSA
Sabe essas senhorinhas em que a maquiagem
acaba mais iluminando que cobrindo
as rugas? Pois lá estava uma, sentada a duas cadeirinhas
bebericando não sei
se café ou chá.
Seja chá, mais
apropriado ao simbolismo
que procuro.
Bebericava em meio
às mastigações
da torrada
que equilibrava
com as mãos.
O único aspecto
indelicado, eu até diria, demasiado
pois fazia par com o meu
de bisbilhoteiro
era o batom
que esmaltava
só levemente o dente.
O sotaque anasalado também lhe distinguia.
Havia outra diferença entre nós:
o lado para o qual se olha o cardápio.
Eu começava
a me simpatizar com ela
não fosse o momento da gorjeta.
Ela, por mais que disfarçasse, não escondia o gozo
o porquê era contra
direitos óbvios. Impedir-lhe
a caridade jamais!
“Como o populacho foi capaz
de preferir as leis
às minhas provisões?”
POETA, E ACUMULADOR COMPULSIVO
Não sou eu, é a casa que acumula
destroços – desafio
a passar pela porta
e não pisar pelo menos
em cinco – desafio
a ir até a cozinha sobre as fatias
de pizza largadas no chão.
Isso que você está sentindo
é o mormaço das palavras.
Sim, para fazer o que faço
escala-se a garganta
cospe-se alguns versinhos – esses aí, que acabou
de escutar, estavam debaixo da mesa
correndo feito um ratinho
em meio a caixas & sonhos
empacotados.
***
O guru
André Luiz Pinto
Poesia
Ed. Patuá
2023
André Luiz Pinto da Rocha nasceu em 1975, Rio. Doutor em Filosofia pela UERJ, leciona na FAETEC e SEEDUC/RJ. Dos livros de poemas, estão, entre outros: Flor à margem (1999), Primeiro de abril (2004), Isto (2005), Ao léu (2007), Terno novo (2012), Nós, os dinossauros (2016) e Migalha (2019), e Balanço, poemas reunidos (1990-2020). Seus poemas serviram também de tema para os filmes “André Luiz Pinto, esse sou eu” e “Autobiografias poético-políticas”, de 2019, por Alberto Pucheu. O Guru ( Editora Patuá, 2023) é o seu mais recente trabalho.
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)