São Cristovão para o 208, crônica de Anthony Almeida

 por Anthony Almeida__





                                                           
A Rua Francisco Maximiano. A casa do número 208: quase pronta. A primeira visita a ela num ônibus, uma ida de menininho, no colo de mamãe; ou na cadeira ao lado dela, com o seu braço me amparando, como se fosse um cinto de segurança, melhor do que um cinto de segurança. No colo ou na cadeira? Em 1995! Na cadeira ou no colo? Em 1995! Eu tinha, com certeza, 5 anos em 1995 — e tinha 6, de outubro em diante. Caminhamos do Rosário Velho até o Centro. O ônibus saiu do Centro até a Cohab III — um ônibus da São Cristovão, desenhado com linhas em duas cores, uma vermelha, duas azuis. O mesmo São Cristovão que me levou muitas vezes ao Centro e à Feira; que me levou muitas vezes, menino, rapaz e homem, à Cohab III; que me levou muitas vezes à casa do número 208, que ficava, na verdade, no Novo Cedro, uma continuação da Cohab III — Cohab que depois começaram a chamar de Bairro das Rendeiras. Até o letreiro do São Cristovão mudou: 109 | Rendeiras. Mas, quando ele me levou pela primeira vez à casa do número 208, eu não sabia nada de Novo Cedro nem de Rendeiras. Sabia de Cohab III. Sabia que papai estava lá, esperando a gente. E também sei que eu começava a juntar as palavras. O ônibus da São Cristovão me levou enquanto lia as primeiras leituras na janela: todas-todas as placas rua afora; me levou enquanto lia o primeiro quase-livro: um gibi de Conan, lido todinho dentro do São Cristovão; me levou a primeira vez à casa quase pronta do número 208 — faltava só o piso de górda de cimento, passada com vassouras, que eu ajudei a vassourar; e as janelas de tábuas pregadas, que não ajudei a pregar, mas que vi quando papai as encaixou, pela primeira vez, nos quadrados que elas tinham de ficar. Mas isso foi depois. Na primeira vez da ida à casa 208, o chão metálico do São Cristovão ficou bem sujo: alguém vomitou. Não fui eu. Nem mamãe. Não lembro se foi um homem ou uma menina. Sei que, nesse dia, ainda não tinha lido nem placa de rua nem gibi de Conan. Acho que ainda não sabia ler, mas tenho certeza que o vômito parecia uma sopa. Tinha pedaço de cenoura, batata, chuchu e tinha um líquido marrom. Quando fui conhecer a primeira casa própria dos meus pais, minha primeira casa própria, nossa primeira casa própria, o ônibus da São Cristovão ficou sujo, um chão molhado de vômito. Vômito é nojento, eu também acho. Mas é por causa dele, daquele com cara de sopa, do seu marcante impacto visual, que me lembro da minha primeira ida à casa do número 208, em 1995, num ônibus da São Cristovão — um ônibus desenhado com linhas em duas cores, uma vermelha, duas azuis.


— Caruaru. Outubro, 1995.




Anthony Almeida
nasceu em 1989, em Caruaru–PE. É cronista, geógrafo, professor e editor-adjunto da RUBEM – Revista da Crônica. Atualmente desenvolve pesquisa de doutorado em Geografia Literária na UFPE, campus Recife, sobre o tema ‘Geograficidades do mundo vivido-escrito na crônica brasileira’. Escreve para a Revista Mirada. Saiba mais em: https://linktr.ee/anthonypaalmeida