Crônica de uma janela apaixonada, de Joaquim Cesário de Mello

 por Joaquim Cesário de Mello__




Foto de Etienne Boulanger na Unsplash


               Seria uma janela como outra qualquer, não fosse seu enorme prazer de sentir-se um olho a observar a cidade em cima do céu do vigésimo andar. 

     Acreditava-se onipresente naquele quarteirão de poucos metros quadrados. Na onisciência do que tudo via se considerava um deus a espreitar o mundo que não criara, através do buraco na parede por onde o vento passava, arejando o quarto onde vivos dormiam, acordavam, trocavam de roupas e em algumas vezes se amavam. Um quarto está para um lar como uma guarita sigilosa e privada está para um castelo. É onde os reis podem se despir de seus trajes majestosos, e, aliviados das cintas, dos espartilhos e das armações metálicas, podem respirar na soltura proeminente e flácida dos abdomens relaxados. 

      Prisioneira em sua solidão emparedada, dialogava com as demais janelas na linguagem das ventanas, no entreabrir piscante das cortinas e persianas, em um confidenciar silencioso no bailar dos ventos que só as janelas sabem. Triste das janelas descortinadas e as dos apartamentos desocupados, pois vivem a mudez como fendas fechadas e reprovadas.

      A janela do vigésimo andar olhava o passar dos transeuntes pelas calçadas. Conhecia-os no seu ir-e-vir cotidiano. Acaso soubesse as horas, saberia com exatidão o instante em que cada um passaria ou indo para o trabalho, escola, compras, ou voltando dos compromissos repetitivos do dia a dia. Havia os madrugadores passeando cedo com seus cães e aqueles que vinham de longe para os trabalhos mais braçais e menos remunerados. A janela, assim, apreciava do alto a romaria continuada dos homens.

      Dos apartamentos em frente observava como um voyeur privilegiado a vida íntima das moradas. Os cafés da manhã e os jantares, o conviver nem sempre harmônico das famílias. Já vira de tudo um pouco: brigas, traições, separações, sexo, choros e várias e diferentes formas humanas de se amar e de odiar. A privacidade de uma casa é o esconderijo onde os seres humanos dispõem suas máscaras e revelam suas verdadeiras faces. 

      Mas o que mais ela gostava de olhar era a janela direita do décimo quarto andar do edifício defronte, a janela do quarto dela que ficava próximo da esquina onde havia um semáforo. Foi lá, na distância métrica que atravessa as ruas, que conhecera pela primeira vez o amor das impossibilidades. A outra janela era bela e bem cuidada, ornada com lindas cortinas rosas claras de algodão mesclado, com finos bordados florais que lhe davam um ar tímido de feminilidade clássica e sedutora, que lhe fazia pulsar as artérias de alumínio no ofegar frio da vidraça.

      E assim se amaram por anos e décadas. Muitos moradores se mudaram, os transeuntes já não eram mais os mesmos, os cachorros eram outros, mas a janela do vigésimo andar com nenhuma outra janela jamais se encantara. 

      E viveram felizes para sempre, até que a demolição um dia as separe.




Joaquim Cesário de Mello -
 Psicólogo, psicoterapeuta e professor universitário. Escritor e poeta, participou de várias antologias literárias, entre elas Nouveaux Brésils Fin de Sciècle (Universidade de Toulouse, França, 2000), Poesia Viva do Recife (CEPE, 1996), Cronistas de Pernambuco (Carpe Diem, 2010), Poesia na Escola (Palavra & Arte, 2021). Em final da década de 80 participou do Movimento de Escritores Independentes e foi cronista do Encarte Cultural do Jornal do Commercio (PE) entre 1998-2002. Autor dos livros Dialética Terapeuta (Litoral, 2003), A Alma Humana (Labrador, 2018), A Psicologia nos Ditados Populares (Labrador, 2020), A Vida Como Um Espanto (Labrador, 2022) e No Cemitério das Nuvens (Folheando, 2022)