Estranha sintaxe em Manoel Tavares Rodrigues-Leal

por Manoel Tavares Rodrigues-Leal_



                    

                                                              Manoel T. R.-Leal – Fotografia em alto contraste (c 2011)


«Sobre sob…» – «…me te desejo…» – «…me te visitei…» – Estranha sintaxe em Manoel Tavares Rodrigues-Leal



Três poemas inéditos 


«Obedeça à gramática quem não sabe pensar o que sente» Bernardo Soares, Livro do Desassossego

«O poeta é um animal longo desde a infância» Luiza Neto Jorge, no caderno Zona Azul, que Manoel Leal lhe dedica: «Humilde homenagem ao seu talento quando da sua morte precoce (1989), com 49 anos.»

«A única conclusão é o manicómio […]» M. T. R.-Leal, 1/7/92 — um passo do caderno O Uso do Cio – parafraseando Álvaro de Campos: «A única conclusão é morrer» («Lisbon Revisited – 1923»)

Não é nosso intuito analisar, por agora, os curiosos momentos sintáticos destes três poemas, principalmente no primeiro. Isso ficará talvez para um outro lugar. Apenas assinalamos os que se encontram no título desta publicação. Deixamos assim os poemas em aberto para as livres leituras e reflexões dos leitores. Sobre a obediência ou desobediência à gramática, apenas transcrevemos em seguida um magnífico excerto do frg. 247 do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares. Nele se situa a epígrafe acima. Note-se que estes poemas de M. T. R.-Leal, agora publicados, foram escritos em 1976 (há cerca de 48 anos), e seis anos antes da primeira publicação do Livro do Desassossego (1982 — meritosa recolha e transcrição de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha).

«A grammatica, definindo o uso, faz divisões legítimas e falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos e intransitivos; porém, o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em intransitivo para photographar o que sente, e não para, como o commum dos animaes homens, o ver ás escuras. Se quizer dizer que existo, direi “Sou”. Se quizer dizer que existo como alma separada, direi “Sou eu”. Mas se quizer dizer que existo como entidade que a si mesma se dirige e forma, que exerce junto de si mesma a funcção divina de se crear, como hei de empregar o verbo “ser” senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então, triumphalmente, anti-grammaticalmente supremo, direi “Sou-me”. Terei dito uma philosophia em duas palavras pequenas. Que preferível não é isto a não dizer nada em quarenta phrases? Que mais se pode exigir da philosophia e da dicção?

Obedeça á grammatica quem não sabe pensar o que sente.»

*

«Que sintaxe de solidão, / se o instante é mera ilusão / de sentir sentimento estrangeiro.»

(os três versos iniciais de um poema inédito de M. T. R.-Leal – 1976)

«O percurso do pulso sob sobre o papel branco» (M. T. R.-Leal – primeiro verso de um poema de 1977)

*

I

Detalhe do manuscrito do poema I — «Sobre sob»


Sobre sob aliança antiga me tão entregue,

sujeito-me a perigos e a esta grave nostalgia:

que visita do tempo, nobre visão: que se cegue quanto mo desdizia

em claríssimo dia… e clandestina embora cadáver, sobrevive esta tão viúva alegria.


Lx. 29-8-76 – caderno sem título – «foi feito numa época dificílima e é ininteligível: época de loucura»

*

II

Detalhe do manuscrito do poema II — «me te visitei»

Tanto me te visitei que, obscuro, já não me descubro,

além virtuais desertos, o suor, logro de gente.

Como não enlouquecer após, perante o discurso do pranto, fala

geometria, como vida se cala cadáver, como não enlouquecer verticalmente?

Depois docemente amar ou brusco beijar rósea boca, como no tempo assassiná-la?

Mas está escrito, inscrito como se vive e arde, como se morre esquecidamente?



Lx. 11–10–76 — caderno De Profundis et de Clamoris


*



III

Detalhe do manuscrito do poema III — «me te desejo»


Se de ti me lembro ou esqueço?

Não sei. Sei que, no espaço ou umbigo do desejo, me te desejo e não me mereço.


Lx. 18-10-76 — caderno De Profundis et de Clamoris





* Coligidos do caderno De Profundis et de Clamoris e de um caderno sem título por Luís de Barreiros Tavares

Nota – Outro artigo na revista Caliban. Nele há uma outra versão do poema II. A versão que agora se publica é mais extensa, mas com o mesmo número de versos. Apenas o penúltimo verso não sofreu modificações. O autor não indicou qualquer preferência entre as duas versões.


…me te quero… — …me te visitei… — uma estranha sintaxe de M. T. R.-Leal

https://revistacaliban.net/me-te-quero-me-te-visitei-uma-estranha-sintaxe-de-m-t-r-leal-253df8c7d486


Pode ler-se aqui um poema com «sob sobre», em vez de «sobre sob» no poema I:

https://revistacaliban.net/os-passos-do-amor-poemas-5257269ae3ed


Referências

PESSOA, Fernando (1982). Livro do Desassossego, por Bernardo Soares. Recolha e transcrição de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. prefácio e org. Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Ática.

PESSOA, Fernando (2014). Livro do Desassossego. Ed. de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Tinta-da-china. 2ª ed.




Manoel Tavares Rodrigues-Leal (Lisboa, 1941-2016) foi aluno das Faculdades de Direito de Lisboa e de Coimbra, frequentando até ao 5.º e último ano, mas não concluindo. Em jovem conviveu com Herberto Helder no café Monte Carlo frequentando com ele “as festas meio clandestinas, as parties de Lisboa dos anos 60 e princípios de 70”. Nesses anos conviveu também com Gastão Cruz, Maria Velho da Costa, José Sebag, entre outros. O seu último emprego foi na Biblioteca Nacional, onde trabalhou durante longos anos (“a minha chefe deixava-me sair mais cedo para acabar o meu primeiro livro, A Duração da Eternidade”). Publicou, a partir de 2007, cinco livros de poesia de edição de autor. As suas últimas semanas de vida foram muito trágicas, morrendo absolutamente só.