Eu e uns tios no churrasco, crônica de Renata Meffe

 por Renata Meffe__



Foto de Oğuz Yağız Kara na Unsplash


—  Mamma mia, que maminha!

— Me passa o vinagrete?

— Mas então, já faz uns três meses isso. Não deu pra acreditar quando vi a cena: os caras usando a base do tronco do cajueiro como lenha pra assar carne! 

— Como assim?

— Faziam o churrasco no pé do cajueiro, literalmente. 

— Muito sem noção.

— Tentei intervir, explicando que a árvore tava viva, que sentia. Até falei pra um deles: ¨Imagina se colocassem fogo no seu pé!¨

— Ferir uma árvore enorme, ou até matar, só pra assar uma carninha?!

— Pois é, pra meia hora de prazer gastronômico, acabar com um cajueiro centenário, que era o que inclusive proporcionava a sombra pro churrasco. 

— Depois reclamam do calor.

— E do aquecimento global.


Enquanto eu tecia este último comentário, tentava mastigar a parte mais chicletada da carne, aquele troço que gira dentro da boca, feito pé de meia desgarrado em máquina de lavar. Na dúvida entre cuspir e jogar pra Laika, que me olhava com olhos vidrados, lembrei — assim meio vagamente — que a maminha vinha de um boi, e que o Cerrado e a Amazônia estavam virando pasto. Com ajuda do suco de cevada, engoli o pedaço de carne e, com ele, o mal-estar daquele pensamento. Ambos ainda rodaram um pouquinho pra lá e pra cá, mas acabaram dissipados.


— Isso é falta de informação. Povo sem educação, né?

Eim que a un ioono.

— Que?

— Desculpa, falei de boca cheia. É que essa maminha tá demais. Não consigo parar de comer, nem pra conversar. O que eu tava dizendo é que a gente tem que dar um desconto. 

— Perdoai-os, pai. Eles não sabem o que fazem. 

— É. Mas nesse caso do cajueiro, além da ignorância, tem também uma coisa de falta de empatia.

— Verdade, o bicho humano acha que pode dispor de outros seres ao seu bel-prazer. 

— O que será exatamente que significa ¨bel¨? Só sei que sempre anda junto com o prazer.

— Um bon-vivant esse tal de bel. Sabe das coisas: vive rondando o que dá satisfação. Parece a gente, que se junta sempre com a cerveja.


Todo mundo riu da minha presença de espírito, e eu agora desfrutava de um pedaço suculento de carne. Tinha pego as manhas e atacava direto os mais mal passados. 


— Pois é, que espécie bárbara é essa que acha pode tudo. 


Foi falar e, pumba: mordi a língua. Não a do boi, a minha.


— A costelinha de porco tá quase saindo.

— Eba! Tô fazendo um pratinho com arroz e farofa pra acompanhar. Sai, Laika! Cachorra folgada. 

— Não fala assim com a Laikinha. Companheirona, viu? E tão esperta...

— E pensar que na China as pessoas comem cachorro. Não me conformo.

— Assar um animal tão inteligente. O mundo tá perdido mesmo.

— Pior que isso só...sei lá...comer criancinha? Que nem os comunistas de antigamente.

— Mas parece que o porco é mais inteligente que o cachorro. 

— Sei não. Deve ser lenda urbana. Ou melhor, lenda rural. 

— Se fosse verdade, os russos tinham mandado logo uma leitoa pro espaço, ao invés da cadela. Ia trazer uns relatórios mais elaborados pra agência espacial deles. 

— Só sei que os porquinhos devem ser mais inteligente que muito comunista por aí.

— Oinc, oinc, oinc.  Cof, cof, engascof, cof, cof.

— Engasgou com a costelinha? Bebe água. 

— Glub, glub. Falando nisso, bora jogar uma água no porco? Dar um tchibum nessa piscina? 


 Mesmo tossindo, eu produzia cada trocadalho do carilho!


— Bora! A água tá limpinha. Troquei no último feriado. Precisar não precisava, mas todo ano eu renovo, por precaução. É tão limpa que na crise hídrica — todo mundo sem água, — cogitamos encher o filtro da cozinha aqui da chácara com o volume da piscina.

— Sério?

— Brincadeira, ô, tá doido? A gente traz água mineral, mas não dessas de galão de 20 litros, que sabe-se lá de onde vem. Melhor as garrafas de plástico pequenininhas, individuais. 

— Que cochurras top, hein? Nada como uma boa cerveja, boa comida, um bom papo, uma boa companhia...

— Pois é, só não achei baby beef. Parece que os açougues tão sofrendo pressão pra parar de vender. Aquele lance do bezerro não poder se mexer. 

— Tanta coisa pra se preocupar, tanta criança sofrendo maus tratos e o povo pegando no pé do nosso baby beef.

— Isso se chama hipocrisia.

— Quem dera eu pudesse passar a vida quietinho, sendo bem alimentado, sem precisar mover um dedo. 

— Nem me fala, que amanhã é segundona e às nove da matina já começo a aguentar o Ramalho.

— Na próxima encarnação quero é nascer baby beef. 

— Olha só, rapaz, aquele ossinho de frango que dá pra jogar e fazer pedido. Chega aí! Vamos ver quem fica com o pedaço maior.

— Como que era mesmo?

— Segura numa ponta e eu na outra. Cada um faz um pedido e puxa pro seu lado. Quem ficar com o parte maior vai ter o desejo realizado.

Um, dois, três e… já!

— Ganhei! Foi só ser magnânimo no meu desejo que o universo conspirou pra eu sair vencedor.

— O que você pediu? O ossinho de frango é um livro de asas abertas, não tem essa regra de manter segredo. Pode contar.

— Pedi para os chineses evoluírem e pararem de sacrificar bichinhos inocentes pra comer. 

— Caramba, que pedido solidário! Você, sim, que é evoluído. 

— Faço o que eu posso. Se cada um colaborasse um pouco... Mas essa costelinha também tá de matar, hein? Me corta mais uma lasquinha? Sangrando, por favor.





Renata Meffe 
Jornalista, fotógrafa, documentarista, tradutora, professora & cronista. Sim, somente atividades altamente rentáveis. Escrevo ensaios que jamais estreiam.