por Alessandro Caldeira__
Lembro-me de alguém dizendo: "estou farto de esquisitos por fora", passei a considerar que, também, não suporto a minha esquisitice exterior enquanto esmago qualquer reação anormal que viesse de dentro de mim. Houve algum momento onde você decidiu mudar seu visual? Seu rosto, seus cabelos ou suas roupas? É assim que nos sentimos confortáveis a mudar, essa mudança artificial, de plástico, onde qualquer um poderia nos rasgar até nos deixarem em carne viva. Olho-me no espelho e percebo o quanto a minha aparência se transformou desde o meu casamento: tenho, agora, uma feição moída, pele escorregadia, derretida pelo tempo.
II
Me pergunto, neste momento, o que significou o meu noivado e toda a celebração criada na igreja: a preparação, o vestido, os convidados e o padre nos abençoando com a frase: “O que Deus uniu, o homem não separa”. Essa sentença, portanto, me colocava unida a uma nova vida ao mesmo tempo que me parecia o meu último adeus e que eu tinha sido abandonada por mim mesma.
III
Na lua de mel interrogava, em silêncio, o meu destino: o que era esse homem com quem me casara? O que fizeram com o meu marido? É como se durante a cerimônia de casamento um escultor tivesse dado os últimos retoques e errado a mão: um rosto redondo afundando os olhos, as dobras do seu corpo sumiram, não sabia mais distinguir onde parava e começava os seus ombros.
Enquanto esse homem, esculpido por algum artista maldoso do tempo, subia as escadas carregando as nossas malas, não pude evitar olhá-lo com desprezo e tive medo de ter perdido o meu marido pelo caminho de casa. Ele, no entanto, estava ali, lutando para mostrar certa satisfação perto de mim, abria as janelas, respirava fundo e me convidava, com um aceno afetuoso: vem ver, amor! Olha que vista linda. Enquanto isso, andava pelo nosso quarto tentando identificar, em vão, qualquer pedaço sequer da minha vida nesse espaço.
Adivinhava, porém, cada cena que estaria por vir junto a essa cama retangular, travesseiros e lençóis carmesim, o cheiro adocicado que se expandia por todo o limite da casa e esbarrava no corpo rijo do meu marido. Fingia não escutar os seus pedidos até que ele fez outra tentativa, virando-se para mim, lentamente, lançando um olhar solidário, cordial e brando; pegando a minha mão fez menção de me levar até a janela: descreveu, em tom artificial, a vista, tentando me convencer de sua beleza e que tínhamos a maior sorte do mundo: “não era isso que queríamos?” e tentou me beijar. Me esquivei. Não, não era isso, dizia a mim mesma.
Não queria uma casa que não é minha, uma cama que me veria obrigada a dividir com um marido que não é meu. Ele, então, se aproximou da cama com um sorriso estático e tirou a calça, antes mesmo de se deitar me pediu para ficar abraçada com ele, mas dessa vez obedeci. O que pareceu lhe deixar contente e, por alguns minutos, se esqueceu do beijo negado.
IV
Assim que me juntei a ele, estendeu o braço e alisou o meu corpo empenhando-se em me divertir com palavras jocosas, observações cômicas sobre o rapaz que nos atendeu na recepção do prédio e fazendo planos sobre passeios em museus, parques, shows; ouvia-o vagamente, com um olhar distraído e enquanto passava a mão pelo seu corpo num esforço para reconhecê-lo tive a certeza de que estava com um estranho: ele era mesmo assim tão largo? Com essas pernas gordas e brancas? Foi a essa pessoa que me liguei para sempre?
Na cama, a sua voz irritante insistia, ainda, em me convidar a ver a vista da praia, do mar, queria contar histórias sobre o novo lugar, mas nada me interessava: a fuga, o ar puro, o condomínio e as histórias me pareciam grandes distrações. Distração. Sim, parece-me agora, que ele fazia tudo isso propositalmente, que tudo tinha sido combinado para chegarmos até aqui. Suas palavras doces, seus sonhos, o homem destemido que havia conhecido, finalmente, pôde dar lugar a esse ser jogado na cama, passando as suas mãos ásperas sobre as minhas costas, roçando seus pés peludos em torno dos meus dedos e beijando a minha testa -gesto que me deu a impressão de que eu estava estendida não na cama abraçada a um corpo, mas que esse local era o meu próprio caixão e fui jogada em cima de um cadáver desconhecido- para que eu não percebesse os seus traços defeituosos, que ficavam mais evidentes com a nudez do seu torso. Nada nele era agradável.
V
Esperava o momento crucial onde seu corpo se encontraria com o meu e me esmagaria confirmando todos os meus pesadelos daquela nova vida.
Agora, suas mãos já se encontravam no meio das minhas coxas; tentava impedir, inutilmente, o seu objetivo, e quanto mais fechava as pernas, muito mais ele forçava as suas mãos, seus dedos escapavam e ocasionalmente conseguia adentrar o meu sexo. Lutava, insistindo para que parasse, que eu só estava querendo dormir; mas implorar era inútil, o seu instinto se acendia a cada palavra minha, a cada gesto de resistência, até que ele jogou todo seu peso em cima de mim, apertou meus braços com força e levou-os até seu pau: "olha só como eles ficam só de olhar para você".
Pela primeira vez, achei-o nojento, senti vontade de vomitar, meu coração palpitava me gritando para fazer alguma coisa. Continuei olhando para o seu rosto desconfigurado, perturbado de excitação e o empurrei; ele, porém, se segurou, deitou em mim mais uma vez e falou com uma voz entrecortada: "esperei para fazer isso até o nosso casamento, te respeitei. Agora você é a minha mulher e deve obedecer".
Quando ameaçou me beijar, escarrei na sua cara, recebi uma bofetada de volta e roçou fortemente seu pé veloso nas minhas pernas. Tirou o seu sexo para fora: "olha como é grande". Forçou. Gritei: “não te amo, não te amo, não te amo!”
Ele urrava como a um animal prestes a devorar a sua presa. Agora a sua carne dura me pressionava, queria me imobilizar para, enfim, colocar o seu sexo grosso dentro de mim, dava-lhe tapas, me debatia a ponto de me confundir, de repente, com outro animal.
VI
Quando terminou, fixei os meus olhos para o objeto duro, maciço e pesado que brilha entre os meus dedos: o que significa isso? Casei com um homem onde o seu amor o levou a comprar até o inferno com a promessa de que "nunca mais iríamos depender de ninguém", e agora me vejo presa nesse brilho transbordando entre os meus dedos cujo metal se aperta a cada minuto.
Algo se rompeu desde o átrio para fora. Não sabia o quê. Mas aquele ser, que é agora nutrido de pretensões, insegurança e insuportável, me despertava um desejo único: enfiar-lhe a faca no pescoço durante o jantar. Furtaria a faca em cima da mesa assim que ele fosse ao banheiro, daria um mínimo sorriso como um personagem de Victor Hugo e alcançaria, de repente, a ponta do metal em sua laringe e rasgaria a sua mandíbula branca e cheia de dentes.
Porém, me arrependi de ter pensado isso, considerava-me, agora, a única culpada: você é responsável pelos seus atos, me diziam, e o único que me fazia crer que nem tudo é responsabilidade era exatamente esse homem estranho que, durante o noivado, tinha dito para mim que seríamos felizes longe da casa dos nossos pais, dos abusos dos mais ricos da nossa vizinhança, hipocrisia e violência do passado. Nada disso faz mais sentido, nem a iminência do ato sexual inevitável que aconteceria sucessivamente, por isso desisti da ideia de matá-lo.
Não conseguia mais me lembrar de nenhum encanto que me fizesse dizer sim no altar. Ao olhá-lo, agora, com asco, desinteresse e indiferença, via-me abandonada nessa luta do eu contra eu.
FIM
Alessandro Caldeira é jornalista, santista e nas horas vagas prefere postergar qualquer um desses títulos para se dedicar à literatura, música e cinema