por Anthony Almeida__
Da rodoviária até em casa, de uber, a mala pesada demais pra arrastar pelo metrô e pelo ônibus, vi a propaganda da macarronada. Deu vontade. Mas não foi meu primeiro almoço. Pertinho de casa tem um restaurante de comida caseira que é digno de se recomendar. Tanto é que o recomendei pro motorista do uber, que ele provasse, não ia se arrepender, tem lá um pf com boi guisado e suco de cajá, é garantia de comida boa e barata, tome nota! Motorista experiente, inclusive de caminhão — enquanto escrevo, deve estar dirigindo até Minas —, ele me falou de canto bom de encher o bucho no Recife. O Mercado de Casa Amarela entrou na minha lista. O restaurante meu vizinho, na dele.
Pronto, foi nesse restaurante aí o meu almoço de regresso, um boi normal, que é como o dono chama o prato que me agrada: boi guisado, feijão mulatinho, arroz branco, espaguete ao alho e óleo e saladinha. Se o feijão for macassar, o prato muda o nome: boi macassar. Se for feijão preto e com galinha, ao invés de boi, o prato tem outro nome-resumo: galinha preta. É assim que o dono anota os pedidos da clientela. De segunda a sexta, o homem rabisca um papel numa prancheta e pede à turma da cozinha uma galinha preta, uma galinha normal e um boi macassar pra mesa grande; um boi preto pra mesa pequena; um boi normal pra mesa do canto. Foi na mesa do canto que almocei. Já tava com saudade do tempero.
João Paulo Cuenca tem uma crônica de viagem sagaz na qual arremata: “o estrangeiro só começa a tomar para si uma cidade quando escolhe o seu bar”. Vou além. Não é só o estrangeiro e não é somente o bar. Qualquer forasteiro que resolve tomar e tatear uma cidade para si, vai construindo a sua constelação de lugares. Voltei a viver no Recife faz ano e pouco, volto agora dumas férias e tenho meu mercado, meu almoço, minhas estações de bicicletas de aluguel, minha linha de ônibus, meu parque... Escolher um parque pra frequentar é parte das coisas que a gente faz quando quer: 1) ajustar a saúde desajustada; 2) fazer caminhadas e outros exercícios; 3) levar uma canga e ficar lagarteando ou lendo um livro; 4) acomodar-se numa nova cidade; 5) continuem a lista. A coisa que me importa comentar é a 4.
Juntando os lugares da minha constelação, no fim do primeiro dia de retorno ao trabalho, eu vinha no meu ônibus corriqueiro, o 522 | Dois Irmãos/Rui Barbosa (Príncipe), e o rush da noite tinha um respeitável engarrafamento. Pois eu, que ia descer na Avenida Agamenon, desci antes, na Rui Barbosa. Saltei no Parque da Jaqueira. De calça jeans, com livro na mochila, mas sem canga, resolvi dar somente uma volta, depois alugar uma bicicleta e fugir do engarrafamento pela ciclofaixa. Ainda pedestre, fui cruzando o passeio, as árvores e as pistas de caminhadas e, aos poucos, me apareceram, além das personagens efêmeras, as costumeiras.
A mulher que tá aprendendo a andar de bicicleta, e tem a ajuda atenciosa da namorada, parece que não apareceu. O cara que usa a pista de corrida e trota como um lutador de boxe, os punhos em guarda, soco direto, soco direto, mais um, outro cruzado, apareceu. A mulher que anda na contramão da pista também apareceu. O cajueiro, que tava frutificando em dezembro, talvez ainda esteja dando seus cajus amarelos. Vejo isso depois, que eu apareci, mas não fiquei muito tempo. Passei foi nos ambulantes e quiosques, peguei um espetinho de queijo de coalho, um suco chamado hidratação, feito com melão, água de coco e gengibre, me hidratei e petisquei. Aí comprei um jornal impresso: o Diario de Pernambuco. Folheei o danado imaginando a minha crônica em suas páginas. Ah, o fetiche do cronista que gosta de ver o texto no jornal de papel! Suspirei, tive uma breve saudade da minha coluna no Jornal Tribuna Livre, e segui na bicicletinha alugada.
E, pra não falar que não falei dos bares, concordo, sim, com Cuenca. O meu, esses dias, me deu um recado divertido. Nele, além do óbvio, tem forró de ralabucho e frevo reggado, discotecagem dançante, brega versão cover e versão original. Minha última aparição por lá foi num brega de Kelvis Duran. Eu nem me lembrava, mas, no dia do show, deixei uma mensagem na parede do banheiro. Parede de banheiro de bar, como se sabe, é quadro de arte e desabafo. Pois pronto, entre pixos, adesivos rasgados e mensagens, revi meu recado. Uma rabiscada de concordância, um apoio a outro anônimo. Algum cara escreveu, em caneta azul: "Ouça Toto — África". Em resposta, de caneta preta: "Tum dum dum dum dum dum dum bd+". Fiquei olhando a letra do tum dum dum e caí na risada quando identifiquei que era a minha própria letra. Lembrei do show, de Cuenca e de Kelvis. Que tontos, que loucos, somos nós quatro!
— Recife. Janeiro, 2024.
Anthony Almeida nasceu em 1989, em Caruaru/PE. É cronista, geógrafo, professor e editor-adjunto da RUBEM – Revista da Crônica. Atualmente desenvolve pesquisa de doutorado em Geografia Literária na UFPE, campus Recife, sobre o tema ‘Geograficidades do mundo vivido-escrito na crônica brasileira’. Escreve para a Revista Mirada. Saiba mais em: https://linktr.ee/anthonypaalmeida