por Rafael Tavares Costa__
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Era a primeira vez que saíria de Santiago sem Benjamín desde que nos conhecemos. Estávamos juntos há quase oito meses, sem que tivéssemos definido o que éramos um para o outro. Àquela altura, eu já tinha conhecido seus pais e sua irmã, tinha frequentado a casa de todos os seus amigos e estado com alguns colegas de trabalho. Do meu lado, Benjamín não conhecia ninguém. Tudo bem que minha situação era outra, nenhum dos meus familiares estava em Santiago, e tudo que tinha eram alguns colegas de trabalho, não muito íntimos.
A primeira vez que conversamos sobre nossa relação foi após um jantar na casa de seus pais. Era a terceira vez que eu os visitava. "Benji, ven a buscar um plato pra tu novio."
A frase, embora despretensiosa, dita como quem aponta algo que está ali, na cara de todos desde sempre, me surpreendeu. Benjamín me encarou e eu soube que algo precisaria ser resolvido. Trocamos poucas palavras durante o trajeto de volta para casa. A ideia de ter um novio não passava pela minha cabeça fazia muitos anos, era algo que havia ficado para trás, perdido entre os traumas e as decepções do jovem que fui. Eu poderia estar em um relacionamento? Logo eu? Benjamín esperou que eu entrasse no banho para finalmente começar a falar.
— Existe algum problema para você em ser meu novio?
— Não. - Respondi secamente.
— Mas o que minha mãe disse hoje parece ter te atingido como um raio.
—Eu só não tinha pensado nisso. Não tinha nos visto dessa maneira. - Eu tentava de todas as formas fugir daquela conversa, dar um ponto final definitivo a ela.
—Entendo. Mas, Marce, estamos juntos há meses; passo boa parte da semana aqui com você. Não é de se estranhar que nos vejam assim. Ou você não concorda?
Me calei. A água caía do chuveiro pesada, como pedras, mesmo depois de tanto tempo não tinha me acostumado às águas de hielo que desciam dos Andes. Eu não sabia exatamente o que me impedia de dizer “Sim, estamos juntos, eu te amo.” Sabia que minha história em parte influenciava nessa resistência. Mas tanto tempo havia passado, eu já não precisava sentir tanto medo. Ou não era apenas medo, mas também culpa? Benjamín era um homem fantástico, maduro apesar da pouca idade, mais maduro que eu inclusive, quase dez anos mais velho que ele. O que Benjamín não merecia, de forma alguma, ser arrastado para o turbilhão de acontecimentos desastrosos que tinha sido a minha vida. Ao mesmo tempo, eu o amava, gostava de sua companhia, crescia com ele, mas me sentia em dívida. Eu não poderia apresentar pais amorosos e compreensíveis. Eu não tinha um passado de viagens entre amigos e boas histórias para contar. Isso quem tinha era ele. Eu era um homem sem origem por necessidade. O meu passado e as minhas memórias estavam trancados a sete chaves. O que eu poderia trazer para nós, acreditava, era uma coleção de vergonhas e desejos de esquecimento. Por isso, evitei pensar no futuro e sequer imaginar um para nós. Para uma pessoa como eu, só me bastava aproveitar as coisas até o momento em que elas chegariam ao fim, como sempre tinha acontecido comigo até então.
Para aliviar a tensão e romper com o silêncio, Benjamín abriu a porta de vidro esfumaçado que nos separava e colocou a cabeça para dentro do box. Ele riu e pegou minha mão.
— Marce, calma, isto não foi um interrogatório. E você não foi condenado a nada. Faça suas coisas no seu tempo. Mas saiba que eu gostaria, sim, de ser seu novio. É por isso que estou aqui. Eu não vou a lugar nenhum. Mas, entenda, o meu tempo não te pertence.
Deixei Benjamín e segui para o embarque. Algo dentro de mim dizia que eu jamais voltaria ao Chile. Ou pelo menos, voltaria diferente. Seria este o motivo secreto da minha volta ao Brasil? Evitei trocar olhares com Benjamín. Olhei pelas janelas do terminal de embarque. Bem ao fundo, os Andes erguiam-se a caminho dos céus, como uma muralha. Desde que cheguei ao Chile, eu gostava de observar aquelas montanhas. Às vezes imaginava que Los Andes era meu elo de ligação com as montanhas da minha terra natal. Um ponto em comum, reconhecível, entre as duas vidas que eu tinha. Em outros momentos preferia acreditar que aquela cadeia monstruosa de rochas e gelo eram, na verdade, o que me separava do Brasil, os muros naturais da minha Alcatraz particular. Eu me sentia seguro de um lado sabendo que o passado estava preso do outro.
Quando o embarque do meu voo começou, lembrei do que Benjamín havia dito antes de sairmos de casa.
— Marce, lembre-se: não importa o que você encontre lá. Ou quem encontre. Já faz muito tempo.
Mal sabia ele que, à medida que avançava na fila que me levaria ao avião, mais eu sentia as situações do passado se aproximando de mim. Era como se o espaço-tempo passasse a se movimentar de forma invertida. O tempo, que antes me afastava e me levava para frente, sempre em expansão, agora fazia o movimento inverso. De certa forma, quanto mais perto eu estava do Brasil, mais próximo eu chegava do passado. E eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, tudo voltaria à tona como se tivesse acontecido ontem.
À minha frente, um funcionário pedia que validasse meu cartão de embarque em uma catraca eletrônica. A partir daquele instante, os vales nevados diante de mim já não existiam mais. Tudo o que via eram as colinas de um verde inocente imprensadas sob o azul magnético do céu de Minas Gerais.
Dentro do avião, olhei para o aeroporto da pequena janela da aeronave. Daquela distância, era impossível reconhecer alguém. Mas eu sabia que o Benjamín estava ali, em algum lugar. Como também sabia que dali dez dias, quando retornasse, seria ele a me aguardar diante daquelas mesmas janelas, esperando o meu avião pousar. Foi esta certeza que me manteve sentado à poltrona e que evitou que eu desistisse da viagem e abandonasse a promessa que fiz a mim mesmo: de que retornaria ao Brasil para ser padrinho de casamento do meu irmão.
Rafael Tavares Costa é mineiro de Juiz de Fora, mas mora no Rio de Janeiro há mais de dez anos. É roteirista e produtor da TV Brasil, onde já trabalhou nos bastidores de programas como Sem Censura e Trilha de Letras. Atualmente trabalha no setor de documentários da emissora. O Casamento de Maurício é seu primeiro romance.