O transplante é um baião-de-dois, de José Maria Cançado

 por Luiz Henrique Gurgel__




Poesia tirada de um transplante do coração (ou uma resenha 20 anos atrasada)



Sempre que leio um livro lançado tempo atrás, e novo para mim, lembro do que ouvi de um livreiro dono de sebo: “Livro novo é aquele que a gente ainda não leu”. Descobri recentemente o primeiro – e, ao que parece, pouco conhecido - livro de poemas de José Maria Cançado, lançado em 2005: O transplante é um baião-de-dois (editora Scriptum). O autor foi um jornalista importante, professor da PUC-MG, escritor e secretário de cultura de Belo Horizonte. 


Ele se foi cedo, em 2006, pouco mais de um ano depois de lançar este livro, tinha 54 anos. A causa foi natural e estúpida ao mesmo tempo. Tempos antes, em 1982, exatamente no dia em que completava 30 primaveras, 11 de fevereiro, ganhou de presente um enfarto e, de quebra, cinco pontes de safena. O coração jamais foi o mesmo até que em 2004 precisou de um transplante que o sustentou por dois anos. 


Soube da existência dele em meados dos anos de 1980. Estudante, eu adorava o jornal Leia livros, do qual ele era editor. Depois descobri a pequena e instigante biografia que escreveu sobre Proust. Mais tarde veio o seu livro mais famoso, “Sapatos de Orfeu”, belíssima – e por enquanto única - biografia de Carlos Drummond de Andrade. Por fim, décadas depois, o livro de poemas, que me foi apresentado pelo também poeta, editor, artista plástico e pesquisador, o múltiplo e mineiro Mário Alex Rosa.

 

Numa conversa informal com Mário falando da biografia de Drummond, ele mencionou o livro do José Maria que havia editado anos atrás. Fiquei entusiasmado e dias depois o achei num sebo no centro de Belo Horizonte. A leitura impactou, li, reli e ainda fui iluminado por dois textos excepcionais que ajudam a pensar o livro e seus poemas: a "orelha" escrita por Mário e o prefácio de Maria Rita Khel. 


Um coração sai, outro entra: que “eu” que fica?


A história é curiosa. Cançado começou a escrevê-lo em plena UTI do SUS, se recuperando da delicada cirurgia. Vivia uma experiência limite, a do fim, ou a do limiar do fim, se podemos dizer desse modo. A indesejada o teria levado antes, não tivesse aparecido um órgão compatível, ou quase todo compatível, melhor dizendo, pois o jovem coração que agora batia dentro dele estava no limite do aceitável para o transplante, ou seja, o índice de rejeição era o mais alto da escala. Noutras palavras, o risco permanecia e ele continuaria perto daquilo que ninguém sabe como é: a própria morte. 


Maria Rita Khel lembra no prefácio que a nossa morte é um dos elementos do Real impossível de simbolizar. Parece meio óbvio, mas não custa lembrar que quando tratamos da morte, falamos da morte do outro: "...nada podemos dizer desse encontro ao qual, quando comparecemos, já não somos". Ou, para esticar a corda, como dizia o grego Parmênides, "o ser é, o não ser não é", e quando você não é mais como poderá verbalizar a própria morte? Para aquele filósofo pré-socrático tudo é uno e contínuo, indivisível, portanto só pode haver “o ser ou o não ser” (emblema que ficou conhecido e batido com Hamlet séculos mais tarde). E aí que Cançado capricha nas reflexões e ironias pelos poemas ao pensar no coração que sai, no coração que entra e no eu que fica. Como se uma metonímia tivesse sido arrancada dele, aquela parte que se foi não podia mais ser tomada pelo todo. Como agora dizer “eu sou o meu coração” ou vice-versa? Com o transplante, o que movia e garantia o seu “eu” era um “outro” que agora estava nele e, portanto, parte do seu eu... Parece, mas não é confuso. Fica mesmo delicado para o poeta dizer "eu”: eu, quem? 


                

Valente, na radiografia

é possível vê-lo alojado desde ontem

ocupado na sua banca

como um verdureiro recém instalado

vindo de outros dias e noites

e outras festas de São João...



Um coração público como o SUS


Em plena UTI, o poeta constata que seu coração é público (em diversos sentidos). Citando Khel mais uma vez: “...seu coração, metafórico ou Real, órgão do corpo ou sede literária da vida e da emoção, não lhe pertence”. O novo habitante de seu corpo tem história própria (inclusive a de um naufrágio anterior, obviamente) que não é a deste corpo em que se instalou, mas do qual agora faz parte e que – além de tudo – o mantém vivo: 



(...) esse coração, seu navegar de capitão pelicano

de quem viu seu navio ir a pique

faz desse puxado SUS da UTI

um aberto anti-salão Titanic.



Mais ainda: está estritamente ligado a sistemas, o da própria UTI com seus colegas pacientes, cabos, equipamentos, bips, enfermeiros e médicos (mencionados nos poemas), e tudo isso, por sua vez, ligado a outro sistema gigantesco, o do SUS, nosso democrático, heroico e combalido sistema público de saúde. Este coração, portanto, não é mera “propriedade privada” do novo corpo, ele é público já a partir da anônima e amorosa doação. Daí o título, referência à música de Gonzaga e Teixeira e ao famoso prato nordestino: “...impossível saber quem é o dois e quem é o um desse baião virtual que é o transplante”, aponta o autor em nota ao final do livro. Por isso, também, aquele espaço da UTI é o “anti-salão Titanic”, não há primeira, segunda ou terceira classe na fila de transplantes do SUS, a ordem de quem recebe os órgãos primeiro não ocorre conforme o poder econômico do sujeito. Basta pensar o horror que seria o comércio de órgãos humanos, como propõe o perigoso fanfarrão da extrema-direita recém-eleito na vizinhança.



nome nenhum                                           nenhum nome

nem meu                                                   nem o seu

                              neste coração


nem desinência                                        nasceu

                             nessa composição


É uma trupe desconhecida

que se formou

                      nessa migração




E se a boca fala do que o coração está cheio, como disse o evangelista Lucas, o novo órgão no peito de Cançado isentou aqueles poemas de sentimentalismo ou de qualquer exibicionismo do drama daquele eu, e muito menos de autopiedade, como afirma Mário Alex na orelha. Pelo contrário, é intensa a lucidez, ali “a poesia pulsa de maneira tensa, aberta a dores, perdas e, sobretudo, a imagens reais e objetivadas que compõem cada poema num ritmo alternado, como se fosse um eletrocardiograma”. 



Só? Não.


Haverá sempre um lugar

para essa minha condição

um fantasma

alguém que passou por aqui e se foi

uma inscrição

a completar

                       num anti-exército

                                               planetário

                                                           de reserva

                                 de libertação



Nascer é lajedo

Renascer é multidão



Por essas e outras sou grato ao meu coração “por não se queixar, por se afanar/ sem elogios, sem recompensa, / num desvelo inato”, como no poema da polonesa Szymborska. Grato também ao sábio livreiro que fez aquela constatação do começo desse texto. Há sempre um grande livro num sebo perto de você. 




José Maria Cançado - Foi um jornalista, poeta, ensaísta e doutor em Literatura Brasileira, trabalhou em periódicos como o Jornal do Brasil, a Folha de S. Paulo e o jornal literário Leia Livros. Destacou-se como crítico e estudioso de literatura, atuando também como editor e professor em diversas escolas (entre elas a PUC-MG). No campo político, tem participação relevante na campanha pelas Diretas, na construção do Partido dos Trabalhadores e na Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte. Fonte: https://sites.letras.ufmg.br/aem/jose-maria-cancado/




Luiz Henrique Gurgel 
é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020) e "
Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias" (Caravana Editorial, 2023)