Os dias de sempre, de Helena Terra

 por Adriane Garcia_






Quem tem lido a literatura brasileira produzida por mulheres nos anos mais recentes pode perceber mudanças, principalmente com relação a temas e novos tratamentos. Assim, é inegável, por exemplo, a atenção despertada para as narrativas que contam sobre questões de gênero, violência doméstica e maternidade. Os enfoques têm sido ricos e variados. Nesse contexto, Helena Terra publicou Os dias de sempre. O romance conta a história de Mariana (protagonista e narradora), uma mulher adulta que se vê diante da notícia de que Nena (a ex-empregada doméstica da família) está gravemente enferma e precisa de atendimento médico urgente. Entre buscar as providências para salvar Nena e rememorar o papel dessa mulher em sua vida, Mariana vai contando sua história, infância, juventude e maturidade. 


O Feminismo sofreu a justa crítica por ignorar a questão racial, de fazer de conta que não existiu (e ainda existe) a dominação de mulheres brancas sobre mulheres negras. A falta de reflexão que integre classe social, raça e gênero leva à pergunta (ainda hoje) da grande abolicionista e ativista norte-americana Sojourner Truth: “E não sou uma mulher?”. Qualquer feminismo que ignore parte das mulheres é um feminismo incompleto, um pseudo-feminismo, um feminismo de conveniência – e a quem ele serve? Em Os dias de sempre, Helena Terra constrói um romance que relaciona classe, raça, gênero, sem condescendência, o que fica explícito na própria dureza com que a narradora – mulher branca de classe média – faz sua “mea-culpa”. 


Segundo dados do DIEESE de 2022, as mulheres representam 92% do trabalho doméstico exercido no Brasil; desse número, 65% são de mulheres negras, a maioria com mais de 40 anos e recebendo menos que um salário-mínimo. O IBGE registra no censo de 2022 o número de 6 milhões de trabalhadoras e trabalhadores domésticos no país; sendo 4,3 milhões na informalidade. Não é difícil compreender que esse fosso ainda é o fosso escravocrata de uma sociedade com estrutura racista, onde culturalmente e economicamente o trabalho doméstico ficou aprisionado a uma origem desvalorizada, apesar de se tratar de um trabalho vital. Primeiro, é um trabalho atribuído as mulheres – o degrau inferior na escala do patriarcado; segundo, é um trabalho atribuído as escravizadas e aos escravizados – o degrau inferior na escala dos sistemas econômicos. No Brasil, no período pós-abolição mais imediato, a continuidade escravocrata que marca o trabalho doméstico ganhou suas condições, já que não houve reforma agrária, qualquer indenização às pessoas negras por séculos de trabalho forçado e todo tipo de maus tratos, enquanto perdiam suas possíveis ocupações na industrialização incipiente para imigrantes brancos. 


Sem saída, no mundo rural, muitas mulheres continuaram nas casas de seus senhores e senhoras; nas capitais, procurando emprego, tinham que aceitar o que era oferecido, um lugar para se deitar, uma comida para subsistir, o salário parco, quando pago. Ser a primeira a acordar e a última a dormir é história que toda empregada doméstica que já dormiu no serviço conhece de cor. Estar sujeita a todo tipo de abuso é outra história conhecida. O mantra repetido tantas vezes pode ser ouvido ainda hoje: “ela é como se fosse da família”. Alguém da família que diferentemente de todos os outros membros, não conta com plano de saúde, geralmente não pode estudar, quando vai aos passeios vai para cuidar dos outros “membros da família”; em muitas casas, sequer pode sentar-se à mesa ou usar o mesmo banheiro; alguém da família cujo quarto entra nas plantas arquitetônicas como um espaço sem janela, em que cabe apenas uma cama. Um familiar cujo trabalho é marcado pela invisibilidade e precariedade, tendo que contar com a “bondade” da família, já que vive em péssima situação financeira, o que lhe agrava a saúde. No fundo, um mantra retórico que serve apenas para confundir uma relação de trabalho mal remunerada e manipular a trabalhadora pela via de seus sentimentos. A confusão é fácil de se estabelecer já que a figura da empregada doméstica geralmente acompanha a criação dos filhos dos empregadores e a proximidade que requer esse tipo de trabalho deixa muito espaço para os afetos; é ainda, em muitos casos, o amor do filho da casa-grande por sua ama-de-leite e vice-versa; amor que tantas vezes toma o leite de um filho da senzala e pode se transformar também em ódio. A relação de trabalho/afeto das empregadas domésticas é cheia de violência real e simbólica.


Em Os dias de sempre, Helena Terra escancara o modo de vida de uma família em que mulheres de várias idades, classes sociais distintas, cor da pele vivenciam seus dramas e relações. O homem comparece como o que é nessa estrutura patriarcal, algo que vale mais e, portanto, pode fazer o que quiser – quando não pode, desconta suas frustrações nas mulheres e na suposta inferioridade que inventou para elas. É interessante que isso fica bem mostrado nos irmãos de Mariana a quem ela chama apenas de “os gêmeos”. Outro ponto interessante no livro é o panorama político que é mostrado conforme o tempo passa, com um destaque para o período da ditadura de 1964 no Brasil. 


Nena é mais uma empregada doméstica no país. A crise simbólica que recai sobre a figura desta trabalhadora é tão grande que somente em 2013, 125 anos após a abolição formal da escravidão, os direitos de outros trabalhadores passaram a se estender a elas, entre eles jornada semanal de 44 horas, horas-extras, adicional por trabalho noturno, entre outros. O escândalo da PEC das Domésticas foi tão grande que certamente contribuiu para o golpe de 2016, retirando do governo a primeira mulher que presidiu o país, Dilma Rousseff. Para além das questões sociológicas importantíssimas que Os dias de sempre traz, Helena Terra constrói uma história em que o corpo da mulher parte do trauma. A criança branca que descobre que não é negra e, assim, descobre a diferença. Mais tarde, o corpo de Nena, precisando de um transplante de rim, em um sistema de saúde precarizado, é o lugar desse trauma, novamente despertando a diferença. Mariana precisa usar seus privilégios para conseguir driblar as dificuldades de atendimento hospitalar. Nena é para Mariana alguém que chega a ser até mais importante que sua própria mãe – é uma mãe substituta. A narradora faz o inventário desse encontro e se descobre em uma dívida histórica, também uma dívida afetiva. Na confusão que mistura o trabalho das empregadas domésticas com a intimidade das relações, o que se salva é também confuso. É trabalho que não foi tratado devidamente, é afeto que foi maltratado por se tratar de uma empregada. Nessa balança mal ajambrada, Helena Terra encontra o ponto da linguagem literária para dar conta de um universo complexo, de personagens complexas, que são muito mais do que os lugares onde são colocadas. Os dias de sempre é a história de uma redenção possível em um país que não aprovou a Lei de Terras quando devia, fazendo da frase de Joaquim Nabuco profecia óbvia: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”, por muitos e muitos dias de sempre.


“Neste início de tarde, ela me propõe uma brincadeira. Devo fechar os olhos. Totalmente. E deixar que ela me guie como se eu fosse cega. O mundo do faz de conta me encanta. Quero ser a sua boneca que anda. Dou quatro, cinco, seis passos e, bum, bato com o rosto em um poste. Testa, nariz, queixo doem. Tudo gira. Estrelinhas aparecem. E sangue. A batida foi forte, proporcional à confiança que tenho em Nena. Talvez eu ganhe mais uma cicatriz. Se eu ganhar, Júlia nos mata. Ela não se cansa de perguntar ao pai quando eu poderei fazer a plástica na que já tenho. Mulheres não podem ter marcas no rosto, Mariana, ela fala. E ser enganadas? Nena me enganou. Não fez por mal. Ela nem precisa me dizer. Assustada, ela se abaixa e me abraça, jurando por Deus e tudo o que é santo que não queria me machucar. Os gêmeos desviaram. Pensava que eu faria o mesmo.” (p. 117)


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Os dias de sempre

Helena Terra

Romance

Besouros abstêmios

2023




Helena Terra
é jornalista, escritora, editora na Besouros Abstêmios e na Peripécia Editora e leitora. Não necessariamente nesta ordem. Coordena o Clube de leitura A Palavra tem Nome de Mulher em Porto Alegre. Publicou os romances A condição indestrutível de ter sido, Bonequinha de Lixo e Os dias de sempre. Participa dos coletivos Feminário Conexões, Mapas do Confinamento e Mundo Desejante.







Adriane Garciapoeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)