A Torre do Silêncio, um conto de Jamyle Dionísio

 por Jamyle Dionísio__


Foto de Jr Korpa na Unsplash


Escritora: Além desta janela, a cidade é toda minha. Só preciso abrir a porta do apartamento, pegar o elevador, descer e sair do prédio. Não preciso dizer a ninguém onde vou, quanto tempo ficarei na rua. Ninguém vai ficar aqui esperando a minha volta. 


Personagem: Moro sozinho na Torre do Silêncio. A terceira à esquerda de quem vem da cidade, a última antes do deserto sem fim. Estou entre a vida e o nada. 


Escritora: Há muitos anos visitei o Irã. Conheci, em Yazd, as tais torres do silêncio. Foram desativadas nos anos cinquenta, o guia turístico me explicou. Com o crescimento da cidade, as casas e as ruas começaram a receber presentinhos das aves de rapina que sobrevoavam por ali: um dedo humano escurecido, um olho avulso meio embaçado, restos de fígado podre. Então tiveram que fechar as torres e adotar métodos alternativos para se livrar dos mortos.


Personagem: As procissões noturnas são as mais bonitas. Daqui do alto vejo as luzinhas em fila. Quando há lua cheia, mais parecem o reflexo brilhante dela sobre o mar. Mas nunca vi o mar, essa é uma imagem que me brota na mente e nem sei de onde vem. Também não sei por que penso em português brasileiro. Eu, que nem sei onde fica o Brasil. Talvez seja uma condição nascida da minha solitude, dessa função que recebi de meu pai, que a recebeu de meu avô. Uma linguagem secreta que fica presa em mim e nunca sai da minha boca, como um gato de apartamento. 


Escritora: Até hoje há seguidores do zoroastrismo no Irã. Dizem que é a religião monoteísta mais antiga que há. Não sei se é mesmo a mais antiga, mas não importa saber: mais bonito é aceitar. Os zoroastristas se desfaziam de seus mortos da maneira mais estranha que há: colocavam os corpos no topo de uma torre para que nem a terra nem os animais menos nobres os tocassem. Somente os pássaros tinham acesso. E assim, indiretamente, seus espíritos ganhavam asas e subiam aos céus depois da morte.  


Personagem: Nunca vi um apartamento na vida.   


Escritora: Tenho essas lembranças agora, enquanto vigio a cidade. Faço notas mentais para um conto. O personagem não terá nome, não precisa de um nome porque não há ninguém para chamá-lo pelo nome. 


Personagem: Já tive um nome, mas esqueci.


Escritora: O céu está tomado da fumaça sépia que vem das florestas queimadas do Canadá. O sol agoniza quase impotente agora que podemos olhar diretamente para ele e enxergar sua verdade: não passa de uma bola alaranjada.  


Personagem: Só eu posso morar nesta torre do silêncio, a terceira à esquerda de quem vem da cidade. Por ser a mais distante e exigir uma caminhada maior, recebe os mortos mais pobres, os indigentes, os que primeiro serão esquecidos. A procissão só pode subir até a metade da torre. Naquele ponto, assisto a última despedida e enfim acomodo o morto em minha padiola, que segue acima comigo. Dali em diante, sou o único vivo permitido. Deixo-o no topo da torre, onde o ar é insuportável. Minha presença nem espanta mais os abutres, que me olham com indiferença por um segundo e logo mergulham de novo os bicos retorcidos na refeição fresca. Retiro a mortalha e deposito o corpo junto aos outros corpos, alguns com os ossos já aparentes pelo descarne. Quando se tornarem nada além de esqueleto, serão varridos para a cova central e, no dia em que eu tiver particular disposição, receberão um banho da sopa ácida que aprendi a fazer com meu pai. Não tenho chefe nem supervisor para controlar o meu trabalho.


Escritora: havia uma pequena casa na torre do silêncio. O guia turístico explicou que lá morava o guardião da torre, uma pessoa que recebia e tomava conta dos mortos. Qual é o tamanho da solidão de alguém que tem somente os mortos por companhia? 


Personagem: houve uma moça, uma vez. O nome dela era Nilufar. O corpo dela era pálido como a lua, os cabelos e os pêlos negros como a noite. Mas os lábios já estavam arroxeados, e mal a deixei no canto mais afastado e limpo que pude, o abutre se interpôs entre mim e ela, abusado, e começou a lhe furar o ventre, furioso. Sonhei muitas noites com Nilufar. Ela usava um vestido branco, como as noivas das revistas européias, e cheirava a jasmim. Nilufar sorria, e seus dentes eram também brancos e lustrosos. Mas quando eu tentava beijá-la, uma águia enorme, como um anjo infernal, agarrava-lhe a cintura com o bico e a levava para longe. Meses depois, quando Nilufar não era mais do que um esqueleto, vi que lhe faltavam os dois dentes da frente.


Escritora: Será que essa pessoa tinha família? Se casava? Tinha filhos?


Personagem: meu pai não é meu pai de verdade. Era órfão, como todos nós somos nesse ofício. Foi escolhido para aprender a função de pajear os mortos. Não se casou, não teve filhos de seu sangue. Também eu terei um filho em breve. Vou ensinar a ele os segredos da solidão, a conversar com fantasmas, a namorar a lua, a responder os uivos dos chacais, e a alongar o corpo todos os dias para evitar dores nas costas.


Escritora: Também eu estou sozinha, e o dia escurece antes da hora. O mundo é tóxico, foi interditado. A ordem é não abrir as janelas jamais. 


Personagem: mas desconfio que todo mundo é como eu. Todo mundo tem mortos para cuidar, todo mundo namora miragens, todo mundo tem uma linguagem secreta que ninguém jamais entenderá. Já começo a perder a linguagem de fora por falta de prática. Usá-la me cansa, me deixa até doente, às vezes. Levo dias para me recuperar.


Escritora: O segredo é não abrir as janelas. Jamais. 


Personagem: será que eu existo mesmo? Será que eu sou o pensamento de alguém?


Escritora: será eu penso um personagem enquanto sou personagem de um pensamento maior de um personagem do pensamento de outro maior ainda, e assim infinitamente até deus? Como aquelas bonecas russas que ficam dentro de outra boneca maior, e essa de outra maior, e assim por diante?


Personagem: essas bonecas se chamam matriochkas.


Escritora: obrigada.


Personagem: de nada.


Escritora: Você também sente que a solitude é uma mão de unhas compridas e afiadas que passeia dentro da gente? Unhas que riscam, devagar, um quadro-negro imaginário bem comprido.   


Personagem: quando te vi subindo a minha torre do silêncio, a terceira à esquerda de quem vem da cidade, gostei da tua voz. Não entendia nada do que você falava. Eu era o último fantasma ali. Mandei tantos para o céu, mas ninguém soube o que fazer de mim quando o shah decretou que as torres fossem desativadas em toda a Pérsia. Ele queria uma nação moderna, sem tradições selvagens que pudessem espantar o mundo civilizado. Dois funcionários públicos vieram até mim. Era verão, e por isso chegaram muito cedo, antes que o sol os impedisse de retornar à cidade. Recebi-os aqui, em meu apartamento. Acho que isso, afinal, é um apartamento: uma casinha no meio de uma torre. Ofereci-lhes chá preto. Ficaram receosos de tomar a bebida feita pelas mesmas mãos que tocam os mortos. E informaram-me então que eu devia sair daqui no dia seguinte, encerrar a função de uma vida inteira. Que seria realocado em algum cargo público na cidade em reconhecimento pelos meus serviços. Que poderia ter uma casinha como todos os outros, e até mesmo constituir família. Não suportei perder a torre, perder o silêncio, o canto dos chacais, a companhia dos meus fantasmas. Meu coração paralisou-se de medo da cidade, meus músculos enrijeceram-se ante a possibilidade da rejeição alheia por eu ter carregado tanto tempo os mortos dos outros. No dia seguinte, quando vieram me buscar, encontraram só o meu corpo. Não sei para onde o levaram. Entendi, então, o quanto os meus mortos me eram indiferentes. Talvez os fantasmas que me visitavam fossem de dentro de mim, não de fora. O meu espírito, sem a ajuda dos pássaros, ficou preso nas frestas dos tijolos. Até você chegar aqui. Até eu decidir que estava cansado disso tudo, e fui embora com você.





Jamyle Dionísio nasceu em São Paulo em 1984. Graduada em Ciências Sociais. Tornou-se servidora pública do Itamaraty. Viveu em lugares díspares como Mauritânia, Irã, Brasília, Líbano, Nova Iorque, Israel e neste momento trabalha, vive e trabalha em Estocolmo, na Suécia. Lançou seu primeiro livro de contos na FLIP 2023, de título Secante. Participou da coletânea Imagens de Coragem pela Editora Patuá também em 2023. Siga a autora no Instagram: @jamyle.dionisio