por Luiz Henrique Gurgel_
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Marcos Simas e Gisela Del Cueto* |
A Kombi vermelha parou na praça da pacata cidade, típica do interior do Brasil, que organizava sua primeira festa literária. Dela desceram um sujeito sorridente e uma mulher tão ou mais sorridente que ele. Foram abrindo as portas do veículo - que mais tarde soube chamar-se Cabíria, nome da prostituta que rodava pelas noites de Roma nos anos de 1950, personagem adorável de Giulietta Masina no famoso filme de Fellini. Cabíria parecia um daqueles carros "Transformers", puxava uma coisa e saía uma estante, puxava outra e vinha um banquinho. Aos poucos entendi tratar-se da casa/biblioteca/livraria (e consultório) do casal que roda o país para falar de literatura, contar histórias, conhecer e atender gente.
O rapaz simpático era o escritor Marco Simas. A companheira de aventuras era a médica Gisela Del Cueto. Ele, um sujeito do cinema que resolveu transformar seus roteiros em romances e sair por aí, de festa em festa literária, a falar de suas histórias e prosear com quem se aproxima da Cabíria, além de vender seus livros. Ela se divide entre as viagens com o companheiro e o expediente com agenda rigorosa em seu consultório no Rio de Janeiro, atendimentos marcados com antecedência. Nessas aventuras, vez ou outra, Gisela e Marco seguem na Cabíria para algum congresso médico que a doutora vá participar Brasil afora. Ou então viajam para algo mais bacana, Gisela sai pelos sertões no consultório-kombi para atendimentos voluntários.
A história da dupla fez lembrar da expedição que um outro casal, os escritores Julio Cortázar e Carol Dunlop, fez em meados de 1982, percorrendo a estrada que ligava Paris a Marselha, na França, parando e pernoitando em todos - literalmente todos, ou quase - os estacionamentos e postos de gasolina do caminho.
O tempo, a velocidade e a forma incomum de lidar com isso é que aproxima a história desses casais de expedicionários. Nas viagens “sem destino”, Marco e Gisela podem até se confundir com os dias do calendário (algo inexistente dentro da Cabíria). Acho que por precaução, pedem às filhas – adultas - que os avisem por telefone alguns dias antes da data de voltar para casa. Mesmo quando têm dia certo de chegada, fazem tudo sem a pressa dos desesperados da nossa era. Aliás, a palavra pressa está riscada no dicionário que há na Kombi e jamais voam a 120 km por hora na autoestrada, fundiriam o motor da pobre Cabíria que se esgoelaria se ficasse muito tempo acima dos 80. Num recente congresso em Belo Horizonte, se Gisela pegasse um avião no Rio, em cerca de uma hora chegaria lá. Mas não, ela e o parceiro saíram com 3 dias de antecedência, pararam onde bem entenderam e ainda chegaram 8 horas antes do início a tempo de tirar a poeira.
Já a dupla de autonautas atemporais da França, Julio e Carol, também fez sua antiviagem numa Kombi vermelha, batizada com nome de dragão de ópera, Fafner. Tinham só a estrada como objetivo. Levaram 33 dias para percorrer os 772 km que separam aquelas duas cidades com o compromisso expedicionário de não sair uma só vez da autopista, anotando tudo o que viam pelo caminho e nas paradas: bichos, plantas, gastronomia, horizontes bucólicos, motoristas, caminhoneiros e até o amor clandestino de outros casais. Se estivessem numa competição em que o vencedor fosse completar o percurso por último, seriam campeões, os mais hábeis em conter a ansiedade da chegada. A expedição deles virou livro, “Os autonautas da cosmopista”, lançado em 1983 e dedicado a um inglês que no século 19 foi a pé de Londres a Edimburgo. Detalhe: caminhando de costas.
Não sei quantos quilômetros a dupla brasileira já percorreu. Também parecem se importar mais com o caminho do que com a chegada. O negócio é rodar “devagar”, olhos abertos e ouvidos atentos às histórias das pessoas com que cruzam nas paradas e nos lugares em que se ajeitam para pernoitar, um posto de gasolina, um estacionamento de supermercado, a garagem de um botequim entre outros. A rotina é a estrada, para inveja de muita gente, inclusive de cronistas.
Mas expedicionários também tem seu tempo de descanso e esses viajantes brasileiros, por exemplo, de vez em quando guardam a Cabíria na garagem e tiram merecidas férias com temporadas no apartamento em que, digamos, moram. Aproveitam para matar saudade das filhas. O sossego desses períodos de descanso dura até a hora em que são tomados pela nostalgia do asfalto. Nessas ocasiões aparecem a pressa e a ansiedade e a dupla fica louca para voltar à estrada para uma nova expedição.
Longe de mim querer falar da genial Teoria da Relatividade do Einstein, mas até onde ouvi falar, tempo e espaço estão totalmente entrelaçados e quando um corpo está parado, o tempo corre com velocidade máxima. Quando ele começa a se movimentar e ganha velocidade na dimensão do espaço, a velocidade do tempo diminui para ele, passando mais devagar...
Não sei bem, mas acho que isso não faz muita diferença para meus amigos autonautas.
*O perfil dos autonautas brazucas:
https://www.instagram.com/estradasdecabiria/