04 poemas a Cecília Meireles – Manoel T. R.-Leal

 por Manoel Tavares Rodrigues-Leal_




Cecília Meireles
                                     

Publica-se também um poema de Cecília: “Retrato”

– Em que espelho

Ficou perdida a minha face?

Cecília Meireles

O poeta é um animal longo desde a infância

Luiza Neto Jorge [O Poeta]

Inscrição no caderno Zona Azul


I

(a Cecília Meireles)

oh sede de brancura        sede de tristeza

sede de amar

Lx. 01–1981 — caderno Rumor de Inverno


II

(a Cecília Meireles)

que frescura de solidão fere teu olhar,

quando respiras, magoada saudade, a distância do mar?

Lx. 04–1981 — caderno Rumor de Inverno


III

(passagem de Cecília Meireles)

Colhes a flor fugidia, esculpida nos sons antigos da harpa do tempo:

templo tangente e antigo como o teu poema, como o fogo de uma ferida;

transparente, Cecília, te celebro e de ti me lembro.

Lx. 16–10–73 — caderno Limae Labor[1]

Manuscrito do Poema IV


IV

(Cecília Meireles)

– Em que espelho

Ficou perdida a minha face?[2]

A juventude mansa e anónima de um quotidiano antiquíssimo emerge:

pequena paz lisa que emigra para espelhos suspensos e atentos e que,

(Cecília Meireles) no exílio te elege.

Lx. 3–2–74 — caderno Limae Labor[3]



Retrato[4]

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?

(Cecília Meireles)

Cecília Meireles, Antologia Poética, Lisboa, Rel. D’Água, posfácios de José Bento e João Bénard da Costa, 2002.

Notas:

[1] Poema publicado no nº 18 da revista Nova Águia — 2º semestre — Outubro 2016. No 1º verso — variante: “alva harpa do tempo” (no manuscrito). A palavra “alva” tem uma cruz por cima traçada a esferográfica, mas não está apagada.

[2] Inscrição de dois versos de Cecília precedendo o poema IV no manuscrito (ver foto). Os dois versos pertencem ao poema “Retrato”, do livro Viagem (1937).

[3] Poema publicado no nº 18 da revista Nova Águia — 2º semestre — Outubro 2016. Por erro na gráfica, os dois poemas (III e IV) foram publicados na revista como se constituíssem apenas um poema. Há uma variante possível no 2º verso: “para áugures espelhos suspensos” (ver foto do manuscrito). A palavra “áugure” designa o adivinho ou sacerdote romano que pressagiava pelo voo das aves, etc. Na construção “áugures espelhos” deverá haver liberdade poética. Não sabemos se o autor abdicou definitivamente dela. Apesar de ter uma cruz por cima traçada a esferográfica, ela não está apagada (tendo uma seta e um ponto de interrogação próximos), o que indicia uma possibilidade de versão em aberto, como por vezes acontece nos seus manuscritos…

[4] Em eco aos dois versos de Cecília em epígrafe e no poema IV, reproduz-se este seu belo poema.



* Poemas coligidos por Luís de Barreiros Tavares


**Este artigo foi pela primeira vez publicado na revista Caliban (15/06/2019): clica aqui



Manoel Tavares Rodrigues-Leal (Lisboa, 1941-2016) foi aluno das Faculdades de Direito de Lisboa e de Coimbra, frequentando até ao 5.º e último ano, mas não concluindo. Em jovem conviveu com Herberto Helder no café Monte Carlo frequentando com ele “as festas meio clandestinas, as parties de Lisboa dos anos 60 e princípios de 70”. Nesses anos conviveu também com Gastão Cruz, Maria Velho da Costa, José Sebag, entre outros. O seu último emprego foi na Biblioteca Nacional, onde trabalhou durante longos anos (“a minha chefe deixava-me sair mais cedo para acabar o meu primeiro livro, A Duração da Eternidade”). Publicou, a partir de 2007, cinco livros de poesia de edição de autor. As suas últimas semanas de vida foram muito trágicas, morrendo absolutamente só.