Jornada de sentimentos: uma entrevista com a escritora Raísa Santos

por  Raisa Santos__



                                                                       


Raisa Santos (@_raisasant), comunicadora e escritora brasileira, apresenta seu primeiro livro,  Delírios: vozes de amores não vividos” (editora Paraquedas, 90 pág.), lançando luz sobre os desencontros amorosos da contemporaneidade. Composta por seis contos envolventes, a obra mergulha em temas como relacionamentos mediados por inteligência artificial, cultivo do amor próprio e as sequelas do luto após um término. A autora desafia as convenções ao criar narrativas distintas, cada uma com seu próprio enredo e desfecho imprevisível.


Da menina contadora de histórias à escritora que é hoje, Raisa trilha um caminho marcado pela paixão pela escrita desde a infância. Formada em jornalismo pela PUC-SP e pós-graduada em Liderança e Gestão de Pessoas pela USP, sua carreira profissional em comunicação corporativa é permeada pela habilidade de contar histórias que conectam mundos distintos. Após mais de duas décadas de maturação literária, Raisa finalmente compartilha suas narrativas, revelando uma parte de si mesma que por muito tempo permaneceu guardada. Para ela, seu livro não apenas a transforma em escritora, mas também orgulha a menina de 10 anos que um dia começou a tecer essas histórias.


1 - Se você pudesse resumir os temas centrais do livro, quais seriam?


São 6 contos sobre amores não vividos. Sobre tantas expectativas que criamos em relacionamentos que nunca puderam existir fora da nossa própria cabeça e, por isso, nunca deixaram de ser lembrados. Esses amores têm um mix de idealização e rejeição que nos deixam dependentes deles. A ponto de não perceber que estamos vivendo de migalhas, de não perceber que poderíamos estar vivendo um amor completo. Às vezes nos libertamos deles. Outras vezes, nos tornamos eles.


2 - Por que escolher esses temas?


Eu criei essas histórias a partir de pequenos elementos de vivências minhas ou de pessoas próximas. Em algum momento eu fui percebendo que eram temáticas muito mais comuns do que no meu próprio círculo e que as pessoas gostavam de compartilhar ou de ouvir histórias assim.


3 - O que motivou a escrita do livro?


Eu observo muito as pessoas e gosto de escrever sobre os sentimentos delas. Sempre amei criar narrativas que pudessem testar cenários de "e se". Uma vez um amigo me contou sobre um romance que nem ele nem a pessoa por quem ele era apaixonado tinham coragem de viver. E eu pensei "e se a tecnologia ajudasse eles?" E assim nasceu “O Software”, o conto mais antigo do meu livro, que escrevi por volta de 2014. E se um dia uma mulher de 70 anos acordasse aceitando seu próprio corpo pela primeira vez e resolvesse sair pelada? Assim nasceu a “Dona Elisa”. E se juntássemos em uma mesma casa várias histórias de amores mal resolvidos durante todo um feriado? Assim nasceu “Carnavais”. E se um dia alguém oferecesse um pão inteiro para alguém que sempre viveu de farelos? Assim nasceu o conto “Migalhas”.


Os dois contos que faltam aqui são sobre vivências minhas. Eu tive minha primeira crise de pânico na pandemia, sozinha em casa. Quando cheguei no hospital, depois de todo o susto de ter achado que eu ia morrer ou que ia pegar COVID - que nessa época parecia pior que morrer, já que não sabíamos nada sobre a doença - eu percebi que eu tinha uma ferida profunda e que nunca tinha doído antes, por isso eu nunca vi. “30 Segundos” é sobre feridas da alma que não doem, mas precisam ser curadas.


“O fim” é um conto de fantasia. Eu escrevi quando me separei e estava tentando entender todas as sensações confusas e controversas que vêm com o luto. Por isso a personagem fica o tempo inteiro atrás de um corpo que ela precisa velar - e é o corpo dela mesma.


4 - Em sua análise, quais as principais mensagens que podem ser transmitidas pela obra?


Aprender a se amar, cuidar das expectativas em relacionamentos, libertar-se das expectativas dos outros sobre você, estar atenta para não se conformar com migalhas, dar o tempo de cicatrização necessário para as coisas.


5 - O que esse livro representa para você? Você acredita que a escrita do livro te transformou de alguma forma? Por quê?


Esse livro é um marco de coragem para mim. Eu sempre escrevi apenas para mim e guardava. Levar esses sentimentos para fora é uma exposição que ainda estou aprendendo a lidar. Em ver outras pessoas se conectando com as histórias, trazendo as perspectivas delas sobre isso. É como se elas estivessem vendo uma parte de mim que nunca foi vista e que eu sempre quis esconder. Eu sempre pensava sobre a ideia de publicar pela também insistência do meu pai,  e desistia em seguida. Esse livro me faz lembrar que todo passo realmente importante da nossa vida exige muita coragem para sair do lugar e para se manter em movimento.


Ele me transformou numa escritora e deixa aquela menina de 10 anos muito orgulhosa em ter começado tudo isso.


6 - É seu primeiro livro?


Não tenho outros livros publicados, mas tenho outras histórias já escritas comigo, desde o primeiro livro completo que terminei com 13 anos. Com essas narrativas maiores eu fui aprendendo a sintetizar as principais ideias e me sinto mais confortável hoje com o formato do conto, que consegue transmitir muitas mensagens de uma maneira mais breve.


7 - Por que  a opção por uma coletânea de contos?


Eu gostava de diversificar os formatos de texto entre contos, poemas, crônicas e romances. Hoje me conecto mais com os contos porque exigem um poder maior de síntese e consegue chegar em mais gente que os lê até o final.


8 - Quais são as suas principais influências artísticas e literárias? Quais influenciaram diretamente a obra?


Antes de escrever, sempre amei ler. Amo poder sentar tranquilamente com um livro nas mãos e uma vela acesa. Por vários anos fiz isso ao lado da minha gata Chachá. Agora tenho a Penélope, minha cachorrinha, que me faz companhia. Gosto de Clarice e Machado, que têm uma leitura dos sentimentos humanos que me fascina. Amo Gabriel García Márquez e “Cem Anos de Solidão” ainda é um dos meus livros preferidos. Mas acredito que o que mais influencia a minha escrita é a pluralidade de temas e autores que eu consumo. Tenho buscado ler mais autoras mulheres - ano passado bell hooks, Viola Davis e Conceição Evaristo me despertaram para temas e sensações muito importantes para o meu momento. Eu gosto de ler biografias, textos históricos, filosofia, lições de liderança. Essa diferença de temas me mantém curiosa, aguça a minha criatividade e muitas vezes me inspira a escrever algo novo.


9 - Que tipo de estrutura você adotou ao escrever a obra?


São 6 histórias diferentes e elas foram escritas em diferentes momentos ao longo dos últimos anos. De uma maneira geral, eu busco, aproximar o público de sensações e sentimentos que sejam familiares a eles - amor, ciúme, perda, acolhimento. São textos com falas, com expressões que costumamos ouvir nas nossas conversas. Eu não busco palavras e expressões rebuscadas na escrita dos contos, mas tento trazer sentimentos complexos, ações dos personagens que gerem questionamentos, que não sejam lineares. Porque na vida somos assim. Às vezes dizemos algo e fazemos outra coisa. Às vezes temos ações que não conseguimos explicar, como quando temos razão, mas assumimos a culpa para fazer aquele sentimento ruim de uma discussão passar. Quando, sem querer, contamos nossa vida inteira para um desconhecido e ficamos sem entender por quê. Tem muito menos previsibilidade e lógica na vida do que na ficção. Eu tento trazer isso para os meus textos.


10 - Você escreve desde quando? Como começou a escrever?


Eu comecei a escrever com 10 anos de idade. Tinha fascínio por criar uma história nova e recheá-la com personagens. Comecei com os textos da escola e gostava de pegar os desafios que os professores deixavam nos quadros para outras turmas. Eu lia lá no quadro da série acima da minha "escreva um conto sobre o folclore" e escrevia para mim, só pelo prazer de poder criar um novo mundo de dentro da minha casa. Às vezes eu entregava para o professor, às vezes eu só guardava para mim ou lia com o meu primo. Eu também gostava muito de ler tudo que eu encontrava e de interpretar trechos dos textos que eu lia.


11 - Você tem algum ritual de preparação para a escrita? Tem alguma meta diária de escrita?


Eu não tenho uma meta de escrita, mas tenho um compromisso comigo de que quando a história chega para mim, eu preciso escrevê-la. “Migalhas”, por exemplo, foi um conto que veio para mim um dia de manhã cedo. Eu acordei, me veio a ideia inicial e passei algumas horas ali escrevendo até sentir que tinha terminado.


“Carnavais”, que é um pouco mais longo, exigia de mim tempo de qualidade. Eu precisava estar descansada porque os sentimentos que vieram dele eram fortes. As relações frágeis, as histórias de amor que doíam anos depois e a violência. Eu escrevi quase sempre de dia e no final de semana para poder estar mais concentrada.


Eu nunca escrevi com o compromisso de publicar, então não conheço a experiência de ter um prazo de entrega para produção do texto. Até agora era apenas um compromisso comigo mesma de fazer a história existir para além da minha cabeça.


12 - O que vem por aí?


Eu tenho lido textos meus antigos, de quando eu estava no colégio ou na primeira faculdade. Não tenho a intenção de publicar esses conteúdos, mas de resgatar sentimentos e contextos que possam me inspirar agora. Estou escrevendo um conto nesse momento sobre relações familiares, desse acordo velado de orgulhos e decepções que temos com nossos pais. Se ele não me machucar muito, vai entrar para um próximo livro (rs).




30 segundos - contos do livro Delírios: vozes de amores não vividos


Álcool gel nas mãos. Álcool 70 nas compras. Lysoform na sola dos sapatos. Põe a roupa da rua direto na máquina de lavar. Entra no banho. É só uma ida ao mercado, mas parece um retorno da guerra. É cansativo.

O banho parece de uma pessoa que passou o dia a chafurdada na merda. Ela esfrega o corpo todo com tanto sabonete, tantas vezes. A calcinha está de molho dentro do box. Cada parte do corpo fica pelo menos trinta segundos sob efeito do sabão. Estamos no meio de uma pandemia. É preciso ter muito cuidado com tudo. Principalmente com os pés. O vírus é pesado, se concentra no chão. E ela fica num pé só, esperando os trinta segundos matarem os micróbios. Então troca a perna para os próximos trinta segundos. E aproveita o tempo para enxaguar a calcinha. E toma um puta tombo. Cai de bunda.

Ela fecha os olhos mordendo os lábios. Que dor na bunda, merda. Ela quer se levantar, mas permanece segurando a calcinha ensaboada com uma mão, tentando impedir que a peça encoste em qualquer coisa. E com a outra mão aperta a nádega, com a esperança de mandar a dor embora.

Esperando a dor passar, percebe que, mesmo com todas as suas manias de limpeza, está sentada no chão do box e começa a rir da ironia daquele momento. Desiste de suspender a calcinha no ar.

Abre os olhos e vê sangue na água. Muito sangue. Deve ser da batida no chão. Mas não, é do seu braço, o que estava segurando a calcinha. Na queda, ela bateu no metal da porta de vidro e se cortou. E o sangramento é considerável. Merda… Vou ter que ir pro hospital.

Enrola a toalha de mão no braço e sai correndo para se vestir. Mas não consegue organizar os pensamentos. Sua respiração está difícil. O peito está doendo. As costas estão doendo. A bunda está doendo. Mas o braço que sangra, não. Ela não tem condições de escolher uma roupa, não consegue se concentrar. Então continua a agir no automático.

Veste o pijama que está em cima da cama, calça um tênis e sai.

O hospital é a três quadras de sua casa, mas ela decide ir de carro. A respiração está difícil. Pronto, é um sinal de que estou contaminada com a doença. Já vinha se sentindo cansada havia alguns dias, sua garganta estava irritada  e  às  vezes doía, e agora aquela dificuldade  de  respirar.  Quase  entrando no hospital, pisa no freio, bem na porta.

Será que eu quero entrar? Eu preciso mesmo estar em um hospital? Ela puxa o freio de mão. Já são mais de onze horas da noite. Tenta respirar devagar e recuperar o fôlego. Então seu corpo inteiro começa a tremer.

Larga o carro antes da entrada do valet do hospital porque o moço está trocando o papel da bobina da máquina de passar cartão e ela mal se aguenta em pé. Não consegue respirar. Não consegue mais segurar a toalha no braço para estancar o sangue.

Ela chega à porta do hospital e se assusta com a própria imagem refletida no vidro. Seu cabelo está um emaranhado pingando água, e ela não tinha tirado completamente o xampu. Usa uma máscara do Pokémon, um pijama velho de manga comprida, um tênis de corrida rosa, uma bolsa bege de carregar notebook e uma toalha branca toda suja de sangue no braço esquerdo.

Fica em estado de choque ao se ver. A respiração, que já estava difícil, se torna impossível. A toalha cai, e ela cai junto. Sorte que o manobrista está logo atrás para entregar o ticket do estacionamento e a impede de se desmontar no chão.



Acorda na sala de triagem com um termômetro debaixo do braço e duas enfermeiras ao lado. Inicia um processo de download de si mesma, pois não está 100% consciente ainda.

“Hein?”

Tem a impressão de que uma das enfermeiras tinha perguntado alguma coisa.

“Você está bem?”

“Eu não sei dizer.” Ia  passar  a  mão  no  rosto,  mas  lem- brou. Não posso passar a mão no rosto quando tem uma pandemia instaurada e o meu país é campeão em contaminação. Mas então percebe que lhe falta uma coisa.

“Cadê minha máscara?”

“A senhora já entrou aqui sem.” “Eita porra.”

“Quê?”

Pede uma máscara descartável e a enfermeira gentilmente diz que estavam só esperando ela acordar para oferecer. Pega um spray de álcool 70 em sua bolsa e espirra nas mãos, nos braços e até na cara.

“Senhora, se acalme. Isso não é pra ficar passando próximo dos olhos ou da região de mucosas.”


“Fica tranquila. Eu faço isso com frequência. Tô acostumada ", ela responde com os olhos fechados, esperando o álcool secar.

“A senhora tem algum acompanhante?” “Não.”

“Tem alguém que possa chamar para ficar aqui no hospital com a senhora?”

“Não.”

Ela então percebe que está chorando. E não por causa do álcool. Mas sim porque a enfermeira está com a mão em seu braço, medindo a pressão, e fazia dois meses que não tinha contato físico com ninguém. Mora sozinha em quarenta metros quadrados, que ela achava que serviriam apenas para dormir depois dos longos dias de trabalho. Mas os longos dias de trabalho passaram a ser dentro de casa e ela estava trancada lá.

Pensa em ligar para seu ex-marido. Ela sabe que ele viria, mas sabe também que ele já está com outra. Ligar para os pais seria uma exposição desnecessária ao risco de contaminação que o hospital representa.

Então era isso. Ela só tinha a si mesma. “A senhora está bem?”

“Eu acho que peguei o vírus. Eu estava com grande dificuldade para respirar e com uma dor no peito. E me deu uma tremedeira…”

“Fique tranquila, senhora. Respire devagar. Já fizemos uma medição do seu oxigênio e está tudo bem. Vamos ter que dar uns pontos no seu braço e o médico vai falar com a senhora.”

Vou ter que esperar o médico vir dizer que eu estou doente. Não é possível! Eu não estava conseguindo respirar! Esse é o principal sintoma dessa doença! Isso é o que ela queria dizer, mas ficou em seus pensamentos. Acaba respondendo um simples “ok”.

Ela fica sentada numa cadeira, concentrando-se na respiração e segurando o curativo que colocaram em seu braço. Até que se dá conta.

“Espera aí… Pontos?”

“Sim, o corte foi profundo.”

Com essas palavras, a enfermeira sai, deixando-a sozinha na sala de triagem.

Ela olha para seu braço sem acreditar. Não está doendo. Doendo está a sua bunda que bateu no chão, o peito para respirar, a cabeça… Mas não o braço. Começa a se questionar se está mesmo acordada ou se tudo isso é apenas um sonho. Podia ser tudo um sonho. A pandemia, o presidente de merda, o estresse absurdo dos seus intermináveis dias de trabalho dentro de casa, a solidão que ela nunca tinha sentido antes, o divórcio. Não parece possível que esteja vivendo aquilo tudo ao mesmo tempo. E ainda está num hospital, com dificuldade de respirar e com uma enfermeira dizendo para ficar tranquila. E um braço bom que receberia pontos.

Tranquila é o caralho.

Ela rasga o curativo que tinham feito nela. Ela quer ver o corte. Só de tirar, o sangue já começa a escorrer. Ela abre o corte, quer ver dentro dele. Por que não está doendo? Aperta o machucado. Morde. E então levanta os olhos para o médico, que chegou bem nessa cena.

“Moça, pelo amor de Deus…”

O homem está apavorado com a paciente de pijama, tênis rosa, cabelo embaraçado e a boca suja de sangue. E então ela começa a chorar descontroladamente. Não consegue explicar para o médico, que permanece encarando-a, incrédulo.

“Não tá doendo. Não tá doendo.”

E tenta respirar. Mas é difícil respirar.

“Não tá doendo! Por que não está doendo? Eu quero que doa! Tá cortado… Olha aqui o tamanho do corte. Olha isso!!!” “Pelo amor de Deus, moça, tira a mão do corte. Vai

infeccionar!”

“EU PASSEI ÁLCOOL! Eu sou o puro creme do álcool! Deveria estar saindo álcool desse corte, porque a minha vida é desinfetar as coisas. Vamos passar álcool nesse cor- te. Quero ver se, assim, não vai doer essa merda.”

Antes de completar a frase, o médico já tinha saído para buscar ajuda, enquanto ela pegava seu vidro de spray dentro da bolsa mais uma vez. Ele tinha certeza de que ela deveria ser encaminhada à ala psiquiátrica. Quando ela remove a tampa para aplicar o álcool, os enfermeiros chegam e a imobilizam.

E a sensação é deliciosa. O que quer que eles tenham aplicado nela trouxe um alívio de outro mundo. Tudo que era tão intenso agora está tão leve. Ela sente uma descarga de alívio maravilhosa, plena, absurda.




Ela acorda num quarto, vestindo uma camisola de hospital e com acesso ao soro intravenoso. Não tem ideia de que horas podem ser, mas o médico e uma enfermeira estão no quarto. E… aí! Agora está doendo o braço. Ela não lembra se tinha dado tempo de colocar o álcool.

“Como você está se sentindo?”

Ela ainda está levemente grogue do remédio. Sorri e olha para o pobre médico com carinho.

“Eu peguei o vírus?”


“Não. Você está bem. Mas é muito provável que os seus sintomas de dificuldade respiratória tenham sido provocados por ansiedade. Estamos com muitos casos assim ultimamente.” Ele está sentado ao lado dela, anotando algumas coisas numa ficha. Pergunta se ela tem acompanhante, se quer chamar alguém para estar ali, mas ela nega com a cabeça

em todas as respostas.

“É muito difícil estar só numa quarentena. Não sei pelo que você está passando, mas mantenha pessoas por perto. Se não tem um companheiro ou uma companheira, busque família ou amigos. Acredite: é muito cruel se colocar completamente isolada por muito tempo.”

Ela continua olhando para ele com carinho, sorrindo e deixando as lágrimas escorrerem. É verdade. Ele não tem como saber tudo o que ela passou para estar sozinha. E não tem como saber como dói a solidão para ela, que gosta tanto de interagir.

“Solidão dói, não é?”

Ela percebe que a mão dele treme e que seu rosto fica vermelho.

“Como você está se sentindo, doutor?”

Ele sorri com ironia e fica calado por alguns instantes.

Até que seus olhos se enchem de lágrimas. “Um lixo. Eu tenho me sentido um lixo.”

Ela mexe a mão do braço com soro e tenta encostar no ombro dele, que não reage. Ela fica em silêncio esperando ele estar pronto para prosseguir o relato.

“É difícil sair para essa guerra todos os dias. Ver colegas amados indo embora. É difícil saber que eu preciso estar aqui, mas que eu sou um risco para todas as pessoas com as quais eu poderia conviver e que eu amo. Eu não sei o que aconteceu para a gente estar assim hoje. E eu não tenho poder nenhum para resolver isso.”

Ela só concorda com a cabeça.

“Obrigado”, o médico conclui e volta para suas anotações. “Você precisa cuidar desse machucado e de todos os outros que estão por fora e por dentro. Não é porque não dói que não está aí.”

“Desculpe. Eu estou ocupando seu tempo com uma coisa tão sem importância perto de tudo o que você tem vivido e enfrentado. Obrigada por estar aqui para todos os doidos que querem morder uma ferida.”

Os dois riem com tristeza.

“Fique tranquila. Não é sem importância. Todas as coisas acontecem por uma razão muito maior. E eu acredito que você precisava desse surto. Com certeza vai te fazer repensar algumas coisas.”

“Eu não sei como isso aconteceu. Hoje foi um dia bom. Estava tudo bem. Eu passei por dias bem piores e não surtei…”

“Não é só um momento. É uma somatória.”

O médico sai e não volta mais. Ela fica no quarto sozinha, pensando que todas as dores que ela tem agora são as dores que já existiam antes do isolamento social. A solidão sempre esteve lá. Mesmo quando ela era casada. Mesmo quando morava com a sua família. Mesmo quando estava em um bar cheio de gente ou num escritório lotado.

Talvez seja isto: o que ela precisa é estar bem consigo mesma para conseguir ficar na própria  presença.  Lidar com as suas dores, suas  angústias  e  também  seus  egos. Ela nunca teve a si mesma. E estava focada em  muitas coisas para compensar essa ausência. Mas chegou a hora de fazer as pazes consigo, se aceitar.

Agora passou a ser possível enxergar todos os seus defeitos. Mas também, se olhar com carinho, pode enxergar todas as suas virtudes.

Ela se levanta e arrasta consigo o suporte do soro que estava conectado à sua veia. Vai até a janela e olha para a rua. Abre o vidro e sente a noite. Aquele vento gostoso que dá arrepio. E sente a própria força nele. Respira fundo várias vezes, como se quisesse renovar o que estava por dentro. E sente o peito doer em cada inspiração.

É um nó no peito. Bem no meio. Ela massageia e respira. De olhos fechados, tenta encontrar o  nó  dentro  de  si.  Ele vem  da  sua  infância,  da  sua  adolescência,  da  sua  família, do seu trabalho, do seu  casamento.  Das  escolhas  que  não fez. O nó vem de todas as vezes em que ela deixou que escolhessem por ela. Das ocasiões em que deixou que ditassem quem ela era, mesmo que não se reconhecesse nessas explicações.

O sol nasce e ela sente que precisa partir. Precisa ir para casa. Precisa resolver a relação mais longa da sua vida: a relação consigo mesma.

Espirra.



Raisa Santos
(@_raisasant), comunicadora com diploma em jornalismo pela PUC São Paulo e pós-graduação em Liderança e Gestão de Pessoas pela USP, se considera uma contadora de histórias e poemas desde os 10 anos de idade. Lançou o  seu primeiro livro “Delírios: vozes de amores não vividos” (editora Paraquedas, 90 pág.), em 2023. Há alguns anos tem se dedicado à comunicação corporativa, especializando-se em ajudar líderes a contarem suas histórias e engajar pessoas em seus propósitos, desenvolvendo, a partir disso, narrativas envolventes. Sob a fachada profissional bate o coração de uma devoradora de livros, sempre fascinada pelas complexidades da existência humana. Ela vê a arte não apenas como uma saída criativa, mas como a possibilidade de aprender profundamente sobre os mistérios da vida. Também pode ser facilmente encontrada ouvindo podcasts, enquanto passeia com sua companheira Penélope, sua cachorrinha.