A estrada de Juliana, um conto de Dias Campos

 por Dias Campos__


Foto de Jr Korpa na Unsplash

O nascimento de Juliana fez do casebre em que viviam seus pais a morada dos bem-aventurados.

É verdade que Juvêncio teria que se desdobrar entre a roça e o galinheiro, pois Maria convalescia do difícil parto e mal tinha forças para amamentar.

O júbilo que dele se apossava, porém, encorajava-o sobremaneira, reduplicando suas forças e a determinação para o trabalho.

Com tantas dificuldades materiais, o bebê parecia fadado à mesma vida que seus pais trilhavam, em que a gleba seria o seu mundo, o analfabetismo, a sua marca, e a gravidez precoce, o resultado da falta de esclarecimento.

No entanto, a estrada destinada a Juliana sofreria repentina alteração...

Foi quando Maria aconchegou pela primeira vez a filha ao peito, e não teve como conter algumas lágrimas. 

Mas se foram poucas as que verteram, nem por isso deixaram de ser escutadas em seus rogos silenciosos...

Mnemósine, a deusa da memória, foi quem escutou as rogativas em favor do futuro de Juliana. E delas se compadeceu.

Resolveu, então, interceder pela pobre mãe junto a Zeus, o sempiterno. E dele obteve permissão para descer do Olimpo e ir agraciar a recém-nascida com uma dádiva que a faria elevar-se sobre os mortais.

A divindade, replena de esperança, partiu sem detença rumo ao Brasil.

E se é verdade que Mnemósine enterneceu-se assim que viu Maria embalando a criancinha, também é exato afirmar que muito se condoeu tão logo seus olhos delas se desviaram. É que a miséria que se abatia sobre a família chocava-se violentamente com a opulência que reinava na morada dos deuses.

Mas como não houvesse tempo a perder, a enviada aproximou-se de Juliana, pousou a mão esquerda sobre a sua fronte, e passou a profetizar um amanhã glorioso. – Viam-se fluidos luminosos saindo de sua palma e enlaçando o bebê.

Transmitido o carisma, e a deusa retornou para os jardins olímpicos, onde a aguardava uma mesa repleta de néctar e ambrosia. 

E mesmo que voltasse radiante, seu apetite demoraria a restabelecer-se, ante a penúria que testemunhou.

O tempo passou sem que nada denunciasse a augusta visita. 

Entretanto, quando Juliana completou quatro anos, seus pais foram envolvidos por um pensamento que, não fosse a origem divina, por certo jamais o teriam. 

Dessa forma, ao contrário do que lhes sucedeu, a pequenina não se movimentaria, apenas, sobre o chão rotineiro dos afazeres domésticos, mas, também, sobre o soalho promissor de uma escola rural.

Juliana pareceu entender e adorar a novidade. E logo se revelou a mais interessada de todos os matriculados. 

E como também fosse serelepe e comilona, rapidamente atraiu a atenção e o afeto de mais de um funcionário.

Dois anos passaram. E quando se iniciou a alfabetização, o presente de Mnemósine começou a revelar-se...

Enquanto seus coleguinhas de classe precisavam de muito tempo, paciência e dedicação para que conseguissem aprender alguma coisa, bastava a Juliana ouvir o assunto uma única vez, ou ver de relance a sua representação, para que o gravasse e o repetisse com a maior naturalidade.

Essa disparidade tornou-se evidente quando a menina passou a cursar o ensino fundamental, em uma escola municipal. 

A primeira revelação aconteceu na aula de português. 

Sua professora leria e discutiria um texto de duas páginas que tinha sido distribuído para a classe na aula anterior. 

Mas quando foi retirá-lo de sua pasta, percebeu que o tinha esquecido em casa.

Ela explicou o que acontecera, e lamentou o esquecimento. Entretanto, perguntou se alguém tinha lembrado de trazer a sua cópia.

Como ninguém se manifestou, ela resignou-se, e terminou dizendo que analisariam o texto na aula seguinte.

Foi quando Juliana levantou a mão direita, indicando que queria falar.

A professora quis saber se era para ir ao banheiro.

Juliana disse não.

Reperguntada sobre o que realmente queria, e a menina respondeu que não seria necessário aguardassem até a próxima aula, pois, se a professora permitisse, ela falaria o texto para a classe.

A professora franziu a testa e replicou, enfática, que acabara de perguntar se alguém tinha trazido uma cópia.

Juliana permaneceu quieta, e à espera.

A professora, que já perdia a paciência, gesticulou que prosseguisse, ao mesmo tempo em que dizia “Leia logo”.

Mas Juliana reiterou que não iria ler, e, sim, falar o texto. – A classe estava em respeitoso silêncio; menos por não entenderem o que ela pretendia do que pela atitude que tomaria a professora.

Retomada a paciência, e a professora explicou que o texto continha frases, palavras, detalhes que teriam que ser analisados em aula, o que seria impossível com a só lembrança da história.

Mas Juliana afirmou que sabia de cor todo o texto, e que, portanto, a professora poderia, sim, analisar tudo o que quisesse.

Foi com profundo desdém que a professora recebeu essa afirmação. Mas como quisesse medir o grau de sua audácia, pediu que Juliana viesse até a lousa e repetisse todo o texto, tim-tim por tim-tim, e em alto e bom som.

A menina levantou-se da cadeira e foi em direção ao tablado; não como andam os orgulhosos, que, desafiados, não deixam passar a oportunidade para humilhar, mas, sim, como caminham os humildes, que sabem muito bem até aonde podem ir.

Juliana subiu ao tablado, virou-se para a turma, e aguardou a licença para começar a falar.

A professora, com mais desdém ainda, deu a autorização com um gesto de mão.

Juliana começou a falar. E a cada frase colocada, era menos um aluno que continuava gracejando; e a cada período concluído, mais se alterava o semblante de sua professora, de desdenhoso para espantado.

Quando Juliana pronunciou a última palavra, uniu as mãozinhas nas costas, olhou para a professora, e, com um leve sorriso, aguardou que se manifestasse. – Todos os rostos viraram-se para a professora.  

É claro que a professora conhecia a história que iria apresentar, pois era a mesma de anos anteriores. Mas mesmo que não a tivesse decorado, não conseguiu perceber nada que destoasse do que seus ouvidos já se tinham acostumado; nada que pudesse criticar ou que gerasse dúvida!

E seja porque não quisesse passar vergonha, seja porque ficasse bastante impressionada, a professora começou a bater palmas. No início, de modo vagaroso. Depois, tornaram-se acaloradas, pois acompanhadas por toda a turma.

A aula prosseguiu, com Juliana repetindo partes do texto a cada vez que solicitada.

Não chegaram a terminar a análise da história, pois o sinal soou. E deixaram para concluí-la na aula seguinte.

A segunda vez que a dádiva de Juliana impressionou foi na aula de matemática. – Por força do ano que cursava, essa disciplina também seria ministrada pela mesma professora. 

Ora, como iniciariam o estudo da tabuada, e porque ficasse incomodada com o que acontecera na aula de português, a professora resolveu testar Juliana.

E depois de ensinar até a tabuada do cinco, a professora avançou sobre o programa e resolveu completar na lousa todas as multiplicações, enfatizando que tudo deveria ser copiado.

Assim que se sentou, passou a questionar-se, enquanto fitava Juliana... 

Que a aluna tinha uma excelente memória, isso parecia indiscutível. Mas será que a sua capacidade estaria restrita aos textos? E, caso contrário, de quanto tempo precisaria para decorar a tabuada?

Pois se levantou e começou a apagar o que escrevera na lousa.

Houve muita agitação, já que a maioria ainda copiava.

Mas Juliana permanecia quieta; apenas que brincava com o lápis.

De repente, a professora disse que escolheria alguém parar tomar a tabuada. E é óbvio que a escolha recaiu em Juliana.

A menina teve que retornar ao tablado, justamente para que não tivesse condições de olhar para o seu caderno.

E tão logo Juliana virou-se para a classe, a professora, ignorando uma ordem lógica na aprendizagem, perguntou o resultado de sete vezes oito. – Vários rostinhos admiraram-se! Afinal, quem imaginaria que as aulas de matemática seriam tão exigentes?

Só que Juliana respondeu na lata.

Isso deixou a professora assustada. Ora, como uma criança poderia responder, acertada e rapidamente, a uma multiplicação tomada ao acaso, sem que tivesse tempo para decorar a tabuada?!

E como essa dúvida martelasse sua razão, a professora resolveu abusar. E perguntou os resultados de nove vezes oito, de sete vezes quatro, e de oito vezes seis.

As respostas vieram corretas e rapidíssimas, o que estarreceu a professora e a todos impressionou.

Em um rompante, a professora disse para Juliana falar toda a tabuada, mas em ordem decrescente, começando pelo dez vezes dez até chegar ao um vezes um.

E a menina falou todos os números, sem cometer um só erro!

A professora, que se tinha levantado, jogou-se na cadeira.

Não houve palmas dessa vez. Pudera! Tanto ela quanto a classe ficaram sem ação.

Na cabeça da professora, portanto, só havia uma explicação: A aluna era superdotada.

Essa suspeita foi comunicada à diretora, que abriu os olhos e ficou muitíssimo curiosa.

A diretora, por seu turno, decidiu que acompanhariam e reforçariam o aprendizado de Juliana, pois precisavam comprovar essa possibilidade.

E caso confirmada uma inteligência invulgar, tudo fariam para que os seus potenciais fossem estimulados e desenvolvidos em plenitude, incluindo submetê-la a uma prova visando à reclassificação; e desde que, é claro, seus pais consentissem. 

Assim, quando Maria chegou à escola para buscar a filha, deparou-se com a professora ao seu lado.

E mesmo percebendo um sorriso acolhedor, a jovem mãe não deixou de ficar intrigada, pois a última coisa que quereria ouvir seria um sabão por causa de mau comportamento.

Mas antes que Maria esboçasse qualquer pergunta, a professora adiantou-se e perguntou se ela e o marido poderiam comparecer à escola no dia seguinte, e no mesmo horário, para uma conversa com a diretora.

Notando o ar contrafeito da mãe, que fixava olhos reprovativos na filha, a professora esclareceu que o assunto de que tratariam nada tinha a ver com mau comportamento. E emendou dizendo que seria um simples bate-papo, mas que traria muito bons frutos para Juliana.

E Maria acalmou-se.

Ao ouvir o convite da companheira, Juvêncio levantou as sobrancelhas. E mesmo sendo por ela tranquilizado, tentou saber da filha, durante o jantar, mais informações sobre o que conversariam. 

Juliana, contudo, garantiu que não sabia de nada.

No dia seguinte, o casal, com roupas de domingo, estava à porta da escola, minutos antes de soar a campainha indicativa do término das aulas.

E em meio à polvorosa que caracterizava a saída, Maria deu um toque no companheiro, alertando-o de que a professora se aproximava.

A professora cumprimentou-os com alegria, e pediu que a acompanhassem até a sala da diretora, onde Juliana já os esperava.

Os roceiros a seguiram. Ela, curiosa; ele, ressabiado.

Quando entraram na sala, Juliana correu a abraçá-los. A diretora levantou-se e os cumprimentou com satisfação. E pediu que se sentassem.

De primeiro, ela os felicitou pela filha que tinham e os parabenizou por a terem matriculado na escola. 

Maria e Juvêncio sorriram com singeleza.

Em seguida, perguntou se eles já tinham percebido em Juliana certa facilidade para lembrar-se de nomes, de datas, de fatos.

Maria, que se sentia menos inibida por estar entre mulheres, disse que isso era muito comum, pois quando se perguntava se o arroz daria para o almoço, Juliana, se tivesse ouvido, respondia sim ou não, conforme a quantidade que sobrara na lata e a necessária, em xícaras, para que a panela ficasse cheia. E completou dizendo que ela também a lembrava dos aniversários da parentada, mesmo que os tivesse ouvido uma única vez.

As profissionais sorriram. 

Ato contínuo, a professora relatou resumidamente o que tinha acontecido nas aulas de português e de matemática. E que, por força disso, suspeitavam que Juliana era superdotada. – Tiveram que explicar aos pais o significado desse adjetivo.

 Maria e Juvêncio arregalaram os olhos. Afinal, quando se decidiram por matricular Juliana, jamais poderiam imaginar que um dia ouviriam tamanho elogio!

Como percebesse a reação do casal, a diretora retomou a palavra e disse que o dom que suspeitavam não poderia ser desperdiçado; que era maravilhoso e que poderia fazer com que Juliana crescesse muito na vida. 

E emendava dizendo que ela e a professora queriam muito ajudar a estudante para que essa possibilidade fosse, de fato, comprovada e desenvolvida ao máximo. 

Mas para isso, precisavam da concordância dos responsáveis para que elaborassem um plano de reforço específico, e que seria ministrado após o término das aulas normais. E se tudo desse certo, o aprendizado de Juliana poderia ser acelerado, mediante a aprovação em um exame que visaria à sua reclassificação.

Os pais, que pouco compreenderam o que ouviram, mantiveram-se calados, sem saberem o que dizer.

Foi quando Juliana disse que gostava muito da escola e que não via a hora de aprender ainda mais.

Os sorrisos assomaram; com o agravante de que marejaram lágrimas dos olhos dos lavradores.

Passados alguns minutos, e as dúvidas que eles ainda tinham foram totalmente elucidadas, de modo que tudo parecia caminhar para um consenso. 

Juvêncio, contudo, meneou a cabeça em seguida, em sinal de desaprovação, pois entendeu que se permitissem esse tempo a mais de estudo, Juliana talvez não conseguiria cumprir com as tarefas domésticas.

Mas antes que a diretora e a professora pensassem em contra-argumentar, Maria atalhou e disse que isso não aconteceria, pois além de a filha ser trabalhadeira, os serviços que lhe competiam não eram muitos nem ocupavam o dia todo. Ademais, se para que Juliana subisse na vida ela precisasse virar-se em duas, trabalharia com todo o prazer e sem jamais reclamar.

Juvêncio nunca vira a companheira tão determinada. E porque se comovesse, acabou concordando, e deu sua bênção à filha.

Os dias seguintes foram de pura euforia. Como tal, além de alguns professores de séries mais avançadas interessaram-se pela novidade e ofereceram-se para ajudar, outros profissionais da área do ensino e da psicologia foram chamados e uniram os seus esforços em torno de Juliana. 

Um plano de reforço escolar foi muito bem elaborado, e dividida a sua execução em duas etapas.

Na primeira, elevaram gradualmente a quantidade de informações. 

E Juliana passou a ler um número cada vez maior de páginas, a relancear diversas imagens e a ouvir múltiplos áudios.

Em princípio, portanto, ficava claro que somente uma inteligência incomum poderia receber tanta informação, lembrar-se de tudo, e na velocidade demonstrada.

Sendo assim, decidiram iniciar a segunda etapa do reforço, que consistiria em aumentar gradativamente a complexidade do conteúdo, o que não prescindiria de um raciocínio elevado, compatível.

E foi aí que os profissionais perceberam que, se para Juliana era fácil lembrar-se do que tinha lido, visto ou ouvido, o seu raciocínio não ia muito além da média das crianças de mesma idade. Em outras palavras, não era porque sua memória fosse fantástica que o seu aprendizado corria em paralelo.

Houve, é verdade, certa frustração. Mas essa conclusão foi logo amenizada pela constatação de que Juliana era possuidora, e em grau elevadíssimo, da enigmática memória eidética.

Por força disso, e depois de uma reunião exaustiva em que vários prós e contras foram levantados, a diretora decidiu, e de comum acordo com os profissionais que a tinham auxiliado, que, se Juliana permaneceria na mesma classe que frequentava, face à sua normal capacidade de aprendizado, era imperioso continuassem investindo no desenvolvimento da sua incrível aptidão, uma vez que aquela poderia alcançar patamares inimagináveis, ante o respaldo que esta proporcionaria.

E para alegria da jovem, de seus pais e de todos os envolvidos, foi o que implementaram.

A memória de Juliana impressionava de momento a momento. E, por consequência, as possibilidades que divisavam pareciam não encontrar limites! 

Mas se é verdade que ela se tornou a melhor aluna da escola, pois tirava sempre a nota máxima em todas as provas, também é fato que certos dissabores começaram a aparecer...

Algumas crianças, as que preferiam as pipas aos cadernos, deixaram-se infectar pelo vírus da inveja, e passaram a desfazer de Juliana. 

Ora, não demorou muito para que os efeitos nocivos do bullying começassem a ser notados; inclusive em sua casa.

Pois Juvêncio não teve receio: Contrariando a companheira, foi dizer à professora que sua filha não ficaria nem mais um dia na escola.

Não se sabe como, mas a notícia de que Juliana iria embora do colégio vazou. E um verdadeiro alvoroço tomou conta dos seus corredores! Afinal, se poucos eram os que a destratavam, a esmagadora maioria dos alunos e a totalidade dos professores e dos funcionários gostavam dela e muito a admiravam, seja pela memória com que impressionava, seja pela origem humilde que não a impediu de estudar. Além do que, nada tinha que a jactanciasse; muito pelo contrário! pois não se negava a usar da sua dádiva para ajudar quem precisasse ou para entreter quem quer que fosse.

Pois à diretora e à professora couberam a tarefa de reverter essa sinuca de bico. E lá se foram para a casa da estudante.

Juliana alegrou-se em vê-las, e correu a abraçá-las. Maria constrangeu-se com sua presença, mas as recebeu da melhor forma que pôde. E Juvêncio, que chegava naquele exato momento, não deixou de cumprimentá-las, mas pareceu não querer prosear.

Depois que tomaram um café recém-passado, a diretora e a professora começaram a argumentar em favor da volta de Juliana, que permanecia quieta ao lado da mãe.

Juvêncio estava decidido a não mais levá-la para a escola, pois não admitia que desfizessem de sua filha. 

Mas quando a diretora garantiu que os envolvidos seriam severamente punidos; que seus pais seriam chamados para tomarem ciência do que acontecera; que esses fatos nunca mais se repetiriam, pois sujeitos à expulsão; e que, sobretudo, ele poderia ser responsabilizado pelo crime de abandono intelectual, que também é apenado com cadeia, Juvêncio engoliu a seco o seu orgulho e achou melhor deixar que Maria levasse a filha no dia seguinte para o colégio.

Juliana retomou as aulas, incluindo as extracurriculares. Os invejosos sofreram a devida punição. E aos poucos, ela se reintegrou no ambiente escolar.

O tempo foi passando. As matérias, sendo ministradas. E o raciocínio da estudante foi-se desenvolvendo.

Já no ensino médio, o seu conhecimento alargou-se para além do ponderável! 

Essa afirmação, concluíram os mestres da escola pública, jamais poderia ser confundida com uma mera figura de linguagem, a hipérbole. É que Juliana aprendera, tomara gosto e dedicava-se com afinco à proveitosa leitura dinâmica.

Por conseguinte, como levasse, em média, de sete a nove segundos para ler uma página, além de já ter devorado quase cinco mil livros, a estudante se lembrava, integralmente, de cada vírgula colocada! 

E mesmo lamentando-se por não conseguir fazer como Kim Peek – o norte-americano que inspirou o personagem de Dustin Hoffman, em Rain man –, com cada um dos olhos lendo uma página de forma independente, ufanava-se de que bateria o seu recorde (nove mil livros lidos!) muito antes de terminar a faculdade.

É preciso esclarecer que Juliana não alcançou essa marca excepcional somente com a leitura de livrecos. 

Na realidade, as obras que ela preferia, em particular nos momentos de lazer, eram os romances volumosos.

Certa vez, a titular de literatura pediu licença maternidade. 

A professora que a substituiu, talvez porque viesse transferida do outro extremo do Estado, não conhecia a fama da aluna modelo; mesmo tendo sido informada pela própria coordenadora, com quem conversara ao telefone. 

E como duvidasse, resolveu testá-la logo na primeira aula. 

Pois tudo o que perguntava, a estudante respondia corretamente e com a maior convicção.

Em dado momento, porque ainda não se convencesse, ela resolveu enquadrar a “espertinha”. E indagou se ela toparia ser desafiada.

Juliana aceitou com prazer; e sob os sorrisos de todos os colegas de classe.

O desafio consistia na leitura de três livros de um dia para o outro. E caso ela conseguisse, e respondesse corretamente tudo o que fosse perguntado, ela ganharia três barras de chocolate, as que escolhesse.

Juliana aceitou. – A professora não percebeu, mas o canto esquerdo da boca da adolescente levantou-se levemente...

A desafiante, então, tirou de sua sacola três calhamaços que trouxera como doação à biblioteca – a Ilíada, Os irmãos Karamázovi, e Os lusíadas –, e os mostrou para a classe, de modo que todos pudessem ver a grossura de cada um. 

Reperguntou a Juliana se ela quereria, mesmo, ler essas obras para o dia seguinte. – Esperava a resposta com um sorriso de empáfia.

Alguns docentes, os que por ali passavam e ouviram sobre o desafio, não resistiram e ficaram escutando atrás da porta. E aguardavam o desfecho, segurando as risadas.

Juliana confirmou que aceitava. Mas acrescentou que não precisava esperar até a próxima aula, pois já tinha lido esses clássicos, e mais a Odisseia, há exatos dois anos.

E enquanto a professora arregalava os olhos, e a classe ria baixinho, um e outro daqueles docentes não se contiveram; e explodiram em risadas.

A substituta, que percebera e aborrecera-se com o comportamento dos colegas, e que já não mais aceitava as risadinhas e os comentários furtivos que ouvia na classe, resolveu partir para a ofensiva.

Abriu, ao acaso, Os irmãos Karamázovi. Começou a ler um determinado parágrafo, e parou em seguida. E pediu para que Juliana o continuasse.

Pois a adolescente deu seguimento à leitura, tal qual o escrevera o romancista! 

E só não seguiu adiante porque foi interrompida pela desafiante, que abriu a Ilíada perto do epílogo, leu uma única frase, e olhou para Juliana.

De novo, a estudante prosseguiu, repetindo o texto ipsis litteris; e até que a leitura fosse obstada.

Ficava óbvio que se a professora pedisse para Juliana falar sobre a terceira obra, ela por certo não erraria. 

Ora, como pretendesse sair da classe com a cabeça razoavelmente erguida, o jeito foi pedir a Juliana que declamasse apenas a primeira estrofe do Canto I, de Os lusíadas

E Juliana declamou, com a maior facilidade.

A professora pediu uma salva de palmas para Juliana, no que foi prontamente atendida, perguntou qual o chocolate de sua preferência, e disse que traria as barras no dia seguinte.

Depois, passou à aula. E falou sobre Camões, sobre sua obra máxima, e comentou alguns de seus poemas. – Menos mal que aqueles professores resolveram poupá-la, saindo de fininho.

Por essas e por outras, Juliana ganhava notoriedade.

Daí que começaram a chover pedidos de entrevistas pelos mais variados meios de comunicação.

É verdade que seus pais assustaram-se no início. Mas como a filha tinha o apoio incondicional da diretora e da professora titular de literatura, que se comprometeram a auxiliá-la sempre que fosse preciso, e como ela mesma estava ansiosa para conceder uma entrevista, eles não mais recearam, pois compreenderam que essas atividades eram consequências naturais do seu dom, e que também contribuiriam para o seu crescimento.

Em dado momento, quando Juliana estava prestes a terminar o ensino médio, uma grande emissora de televisão entrou em contato com a escola, visando a convidá-la para que se apresentasse em um programa de perguntas e respostas, e que seria transmitido ao vivo. 

Tratava-se de uma competição escolar em que os melhores alunos das cinco principais escolas da capital disputariam entre si, e contra Juliana. E quem ganhasse, levaria um vultoso prêmio em dinheiro.

Ao saberem disso, seus pais ficaram muito receosos, pois seria a primeira vez que a filha viajaria. E mesmo que o transporte e a estada fossem bancados pela emissora, seria a primeira vez que a veriam sair da cidade.

Mas Juliana, cujos olhos irradiavam euforia, tratou de tranquilizá-los, pois além de a diretora e de sua professora de literatura garantirem que também iriam, a escola ainda levaria vários de seus colegas de classe como torcida organizada.

Ademais, afirmou que, depois que ganhasse o prêmio, retribuiria aos pais a oportunidade de ter podido estudar, mandando construir uma linda casinha para eles, e abrindo uma poupança que lhes garantiria a velhice. 

Seus pais não conseguiam falar. Deixaram, porém, que as lágrimas respondessem e abençoassem a viagem. 

À hora aprazada, e tendo em mãos as necessárias autorizações – Juvêncio e Maria assinaram com o polegar, a rogo do promotor de justiça –, a diretora, a professora de literatura, Juliana e seus colegas entraram no micro-ônibus e partiram bem cedo rumo à cidade grande.

A gravação aconteceria só às quinze horas. Por isso, todos tiveram tempo para acomodarem-se, almoçarem, e conhecerem um pouco do hotel.

Havia muita expectativa na emissora. E não somente por causa da “garota prodígio” – alcunha por que fora anunciada –, mas, também, e em particular, pela audiência que o programa atingiria.

E para júbilo do diretor, as pontuações já indicavam que o programa bateria todos os recordes! – Os pais de Juliana não puderam assistir, pois faltava luz desde a última tempestade.

Juliana foi muito aplaudida quando entrou no estúdio. E retribuiu com acenos.

O apresentador passou a explicar as regras da competição. 

Haveria cinco blocos sobre quaisquer das matérias lecionadas no último ano do ensino médio. E em cada bloco, quatro seriam as perguntas que surgiriam em um telão.

O apresentador leria em voz alta a questão, e cada equipe teria poucos segundos para confabularem. 

Quando soasse a campainha, qualquer um dos integrantes de uma equipe poderia apertar o botão que estava instalado na sua bancada, o que lhe daria preferência para responder.

A cada resposta certa, ganhariam dez pontos. 

Se errassem, qualquer um dos outros concorrentes poderia apertar o botão e responder. 

E quem obtivesse maior número de pontos, ganharia o prêmio.

Todos os competidores estavam entusiasmados, e mal viam a hora de começar.

O programa teve início com o telão mostrando uma questão sobre geografia.

É claro que Juliana foi a primeira a apertar o botão. E também é óbvio que ela acertou a resposta.

Todos os participantes e suas torcidas aplaudiram com admiração.

Ocorre que o tempo foi passando, as perguntas sobrepondo-se, e, à exceção de Juliana, nenhum dos outros concorrentes conseguia apertar o botão em tempo hábil, seja porque eram cada vez mais difíceis, seja porque não conseguiam pensar ou trocar ideias.

A certa altura, se os índices de audiência estavam a mil, o mesmo não acontecia com os demais participantes e suas torcidas; incluindo a que acompanhava Juliana.

O constrangimento tornara-se insuportável! E o próprio apresentador não sabia mais como se portar. 

Veio o intervalo ao quinto bloco.  

Juliana, tal como muitos, aproveitou para ir ao banheiro. 

Mas quando estava na fila, percebeu que os olhares que lhe dirigiam nada tinham de afetivos. 

Ela resolveu dar de ombros. 

No entanto, quando alcançava a entrada do banheiro, ouviu dizerem que “A aberração vai entrar”.

O sangue subiu-lhe à cabeça!...

Ela virou-se; desferiu um olhar raivoso para as adolescentes; e, com voz pouco amigável, exigiu saber quem era a autora daquela fala.

A fila permaneceu na defensiva; se bem que os risinhos e o murmurinho começassem a pipocar.

Juliana entrou na cabine cuspindo fogo! Trancou a porta, deixou cair o rosto sobre as palmas das mãos, e chorou muito.

Ao levantar a cabeça, olhou para as costas das mãos... E lembrou-se de que eram trigueiras; de que era pobre; e de que seus pais eram roceiros sem nenhuma instrução. E suspeitou que o xingamento não visava apenas ao seu dom.

E o ódio tomou conta do seu coração, dos seus pensamentos, do seu modo de encarar a vida.

Ao sair do banheiro, foi passando pela fila como se ela não existisse.

A campainha soou, chamando todos para retornarem aos seus lugares.

A direção da emissora estava de mão atadas. E se não convinha abortar a competição, uma vez que a audiência jamais alcançara níveis tão altos, também não era justo que continuassem as perguntas, visto que só Juliana responderia.

O diretor, porém, teve uma ideia, e enviou uma ordem através do ponto. 

E quando o programa voltou ao ar, o apresentador perguntou a Juliana se ela não se incomodaria em abrir mão de responder no último bloco, pois, deste modo, haveria a possibilidade de também aplaudirem os segundo e terceiro lugares.

Todos emudeceram. E não seria leviandade afirmar que isso se repetiu em todas as casas que acompanhavam a competição.

Juliana cravou os olhos no apresentador com tanta raiva, que ele, sentindo os dardejares, até se inibiu. 

Depois, respondeu que ficaria incomodada.

O apresentador deu um tossido, e pediu para que Juliana repetisse, pois parecia não ter ouvido corretamente.

Pois Juliana reafirmou que ficaria, sim, muito incomodada, pois os seus colegas de escola e toda a sua cidade estavam vendo o programa e torcendo por ela. E que, portanto, não faria o menor sentido mudarem as regras da competição de uma hora para outra só porque vencera os módulos anteriores. 

E terminava com a estocada de que isso também não seria justo para com as milhares de pessoas que assistiam ao programa.

O apresentador deu outro tossido, ao mesmo tempo em que meneava a cabeça para a esquerda. E ficou à espera de um milagre – leia-se, uma solução arranjada pelo diretor.

Não havia o que fazer. E a ordem foi para que continuasse com as perguntas.

E porque a cólera a dominasse, Juliana fez questão de responder ainda mais rápido. 

Só que antes de proclamarem a escola vencedora, as vaias começaram. E logo se multiplicaram! 

Ainda houve tempo de sobreporem palmas e hurras previamente gravadas para tentarem abafar esse terrível desfecho. Mas seria inocência acreditar que ele não foi percebido pelos telespectadores que acompanhavam a competição.

A diretora, ladeada pela professora de literatura e por Juliana, recebeu o troféu de primeiro lugar e o cheque representativo do valor do prêmio ainda nos bastidores. E só não retornaram de imediato para sua cidade porque um dos pneus do micro-ônibus tinha sido furado.

Todos voltavam calados. Até que a professora de literatura não se aguentou, levantou-se da cadeira, ficou de pé no corredor do veículo, e olhou para o grupo. 

Conseguida a atenção de todos, passou a falar. Relembrou que a emissora de TV conhecia a fama de Juliana. E mesmo assim, pensando mais na audiência do que no equilíbrio entre os competidores, fez questão de convidá-la. Acrescentou que as outras escolas também sabiam quem iriam enfrentar. E que, portanto, não poderiam esperar outro resultado. 

Por isso, que ninguém se sentisse envergonhado e muito menos zangado com os organizadores ou com os maus perdedores, cujo comportamento foi reprovável. 

E terminava dizendo que se Juliana fora contemplada com um dom maravilhoso, tinha todo o direito de fazer bom uso dele.

Súbito, um dos alunos começou aplaudir. E os aplausos tomaram conta do micro-ônibus.

Juliana, devidamente representada, presenteou os pais com uma belíssima TV, com um celular de última geração, e com uma invejável poupança. Mas ambos recusaram-se a mudar de lar. – Com o restante do dinheiro, comprou para si outro celular e abriu uma conta corrente. 

Mas os efeitos daquele programa não se limitaram àquele prêmio. 

Como a notoriedade de Juliana espraiava-se com a velocidade da luz, a adolescente passou a ser disputada por inúmeras universidades, nacionais e estrangeiras. 

O que não faltavam eram ofertas de bolsas integrais de estudo, variando-se, apenas, os atrativos extras, tais como o tipo de hospedagem, o valor das mesadas para gastos pessoais, a marca do veículo (com motorista) que utilizaria para deslocar-se, e até a classe em que viajaria de avião.

No entanto, oh risível paradoxo! ainda que a extraordinária memória fizesse de Juliana uma sumidade do ensino médio, ela não a protegeu da dúvida que assola boa parte dos estudantes de sua idade – não se decidira por uma carreira.  

Além do que, havia um agravante. Depois de ganhar aquele magnífico prêmio, ela já se questionava se precisaria, mesmo, concluir o ensino superior para só depois passar a usufruir das benesses que o dinheiro proporciona.

Esse questionamento, fruto da imaturidade e do imediatismo adolescentes, Juliana deixou escapar em uma entrevista que concedeu a um canal de TV suíço.

E isso foi suficiente para que, três dias depois, sua casa fosse visitada por quatro estrangeiros...

Como Juvêncio estava na roça e Juliana ainda não chegara da escola, Maria tomou um susto quando ouviu uma buzina estridente. E mais assustada ficou quando os engravatados saíram do carro e, sorridentes, foram em sua direção.

Os executivos até que falavam bem o português. Por isso, foram logo se apresentando como representantes de certa universidade. 

E porque soubessem que a adolescente já tinha sido convidada por outras instituições de ensino, tinham viajado do seu país especialmente para conhecê-la e apresentarem uma proposta irrecusável.

Maria, com sua simplicidade, disse que Juliana estava para chegar. Pediu que entrassem, e ofereceu um cafezinho que acabara de passar. Eles aceitaram.

Pouco tempo depois, Juliana chegava, acompanhada do pai. Mas como estranhassem o carrão à porta do lar, foram entrando às pressas e perguntando por Maria.

Os estrangeiros, sempre sorridentes, aguardaram que a dona da casa os apresentasse.

Mas como Maria não teve iniciativa, aquele que liderava a comitiva tratou de apresentar-se, e aos outros.

Juvêncio passou para o lado da companheira e deixou que a filha assumisse a conversa.

O líder explicou a que vinham. E pediu para Juliana ouvir atentamente a sua proposta milionária antes de tomar qualquer decisão.

O adjetivo chamou a atenção da garota, pois vinha ao encontro do que se enraizava em seu coração. E ela era toda ouvidos...

O executivo percebeu um sorriso promissor na jovem, e aproveitou para perguntar se ela gostaria de conversar em particular.

Voltando-se para seu pai, Juliana pediu licença com os olhos. E Juvêncio assentiu com um gesto de cabeça. 

Os cinco saíram do casebre.

Mas antes que o estrangeiro começasse a falar, Juliana disse que nunca tinha ouvido falar daquela universidade.

Sem demonstrar nenhum abalo, como se tivesse pronta a resposta, o líder justificou que a instituição que representava não ligava para publicidade, pois o que importava, na verdade, eram os resultados, que sempre eram muitíssimo positivos.

 E para que a jovem não tornasse com outra pergunta, o executivo foi logo apresentando a sua oferta.

Juliana teria duas opções. Se quisesse concluir uma faculdade, ela seria imediatamente admitida em seus quadros; sem ter, portanto, que prestar qualquer exame de aptidão. E fosse qual fosse a melhor oferta que a jovem já tivesse recebido, a universidade a cobriria, duplicando-a! De outra parte, seus pais poderiam, se quisessem, mudar de país com ela. E caso declinassem, seriam custeados pelo resto de suas vidas com uma pensão cujo valor faria com que nunca mais pensassem em trabalhar. Iniciados os estudos, e Juliana receberia o visto permanente de imigração, cujos direitos inerentes ele pressupôs conhecesse. E concluído o curso, ela já estaria empregada na própria instituição, devendo trabalhar em seus quadros por dez anos no mínimo, com a possibilidade de recontratação automática por igual período. O salário? O representante preferiu mostrar na tela do seu celular.

Juliana bambeou, pois nunca vira tantos zeros à sua disposição!

E antes que tivesse tempo para falar, o chefe da comitiva passou à segunda opção.

Mas se preferisse pôr as mãos, de imediato, no quádruplo dessa quantia – a adolescente arregalou os olhos! –, a universidade dispunha dos meios necessários para que isso se concretizasse; mantidas, é claro, todas as cláusulas contratuais já enumeradas.

Neste exato momento, ouviu-se um estrondo, que aos estrangeiros assustou. 

A garota riu. E esclareceu que isso era aviso de chuva. – Com certeza, era um aviso...

Como os quatro a fitavam aguardando a resposta, Juliana pediu alguns dias para pensar.

O representante disse que seus superiores não gostavam muito de esperar. No entanto, como o assunto era de importância capital, pois dizia respeito ao seu futuro e ao de sua família, abriria uma exceção. Mas esperaria não mais que três dias.

Ao estalar dos dedos, um dos subordinados entregou a Juliana um papelucho em que estavam discriminados todos os benefícios a que ela teria direito, caso aceitasse a proposta, sendo que o valor da segunda opção vinha em negrito. E no verso, havia um número de celular, para que ela ligasse a qualquer hora do dia ou da noite.

Juliana guardou o bilhete e estendeu a mão direita em cumprimento, procurando demonstrar que não lidavam com uma pirralha.

Depois que os estrangeiros foram embora, a adolescente quis conversar com seus pais.

Sentaram-se ao redor da pequena mesa de madeira, sobre a qual Maria depositou outro bule de café recém-coado, e novas canecas.

A garota estava eufórica! Queria contar, rir, gritar!... Sentia-se poderosa!

Seus pais comungavam dessa alegria, e sorriam.

Juliana tomou um gole de café, que chegou a queimar a língua, e passou a contar sobre a proposta que recebera. – Ocultou, porém, a segunda opção, pois tinha a certeza de que ficariam tristes por saberem que ela teria que parar de estudar.

Afirmou que de todas as propostas que recebera, essa era, sem dúvida, a mais vantajosa. E terminou perguntando se eles a deixariam escolher livremente.

Juvêncio antecipou-se e disse que nunca imaginara que a filha chegaria tão longe. E que não seria ele quem a impediria de subir até o patamar que desejasse.

Juliana sorriu. E olhou para a mãe.

Maria, de olhos úmidos, disse que mais do que ninguém queria ver a filha feliz, realizada. E que se ela decidisse ir morar fora do Brasil, que fosse em paz, pois teria a sua bênção.

Ela levantou-se, e foi agradecê-los com um abraço. E como soubesse que eles jamais subiriam em um avião, fez questão de afirmar que voltaria a cada seis meses para visitá-los.

Juliana, sentindo-se invencível, ligou para o estrangeiro e confirmou que os acompanharia.

E quando perguntada sobre qual a opção escolhida, a adolescente respondeu que se decidira pela segunda.

O líder exultou, e disse que começaria a providenciar a papelada necessária à viagem.

Pedia, no entanto, que Juliana fosse reservada quanto aos seus planos, seja para que seus pais fossem preservados do assédio da imprensa, seja porque o valor da pensão que receberiam era tão alto que poderia atrair a cobiça de sequestradores. 

Ela arrepiou-se! E prometeu manter segredo absoluto.

E como o ano terminava, quando perguntada qual a faculdade que escolhera, Juliana, por mera consideração à sua professora, dizia que cursaria Letras.

Logo no início do ano, aqueles estrangeiros foram buscar Juliana no dia e hora marcados, munidos da documentação necessária a uma viagem desacompanhada dos pais.

Houve, é claro, muita choradeira na despedida. Mas a jovem relembrou a seus pais que eles sentiriam todo o orgulho do mundo quando a vissem retornar riquíssima. 

No aeroporto, ao contrário do que se esperaria, Juliana não enfrentaria fila nem voaria em um avião comercial. Ela embarcaria em uma aeronave particular; por sinal, muito discreta.

Quando o jatinho saiu do espaço aéreo brasileiro, o chefão achegou-se da passageira e, estalando os dedos, recebeu uma maleta de um dos subalternos. E depositou-a sobre a mesinha que a servia.

Ao abrir, milhares de dólares reluziam! 

E como tivesse a certeza de que já eram seus, a garota sorriu, fechou lentamente a maleta, e a encaixou entre as pernas.

Depois, fixou os olhos no “patrão”, e perguntou como quereriam que sua memória fosse bem empregada.

Ele sorriu. E como também tivesse a certeza de que a cooptara por completo, resolveu abrir o jogo. Explicou que representava, não uma universidade, mas, sim, certo departamento de inteligência... E que seu governo desejava que ela usasse a memória eidética em favor de vários objetivos, mormente os ligados à espionagem industrial, cibernética e militar.

Pois Juliana estendeu novamente a mão direita em cumprimento, ratificando que jamais trataram com uma fedelha.

Só que no instante seguinte a esse aperto de mãos, trovões começaram a ribombar, anunciando uma borrasca. 

Não demorou muito para que a chuva desabasse. E os ventos, fortíssimos, impusessem tremenda turbulência. – A maleta caíra ao chão, abrira, e o dinheiro esparramou-se.

De repente, um raio atingiu o jatinho! Os aparelhos entraram em pane, e o pânico tomou conta dos tripulantes e dos passageiros.

E Juliana, com as mãos agarradas aos braços do assento, gritava, chorava, e implorava por socorro! 

Mas as súplicas não foram atendidas. 

E a aeronave precipitou-se no mar, para nunca mais ser encontrada.

Passados vários anos dessa tragédia, Maria ainda aperta ao colo o travesseiro de Juliana quando a saudade ferreteia. 

E tal como acontecera quando aconchegou o seu bebê ao peito pela primeira vez, as lágrimas que verte suplicam, caladas, uma explicação.

Mas Mnemósine recusa-se a atendê-la. E jamais se arrependerá de ter pedido a Zeus pelo fim da protegida.




Dias Campos
 é autor do romance "As vidas do chanceler de ferro", Lisboa: Chiado Editora; Colunista do Jornal ROL; do (atual) site Cultura & Cidadania; do Portal Show Vip; e do (atual) portal Pense! Numa notícia; autor de diversos textos literários; autor e coautor de livros e artigos jurídicos.