A morte do cão, crônica de Adriano Espíndola Santos

 por Adriano Espíndola Santos__


Foto de Madalyn Cox na Unsplash


Era feriado de São José, em Fortaleza. Uma chuva fina percorria o dia. Havia marcado com meu amigo Tiago para fazer uma nova tatuagem. A sensação, para quem nunca fez, é de excitação; algo novo, que vai ficar comigo para sempre; um espírito subversivo te domina. Cheguei ao estúdio às 10h, como havíamos combinado. Meu amigo chegou alguns minutos depois, pedindo desculpa pelo atraso, porque seu cachorro estava nos últimos dias; velhinho, sem andar, fazendo cocô e xixi no mesmo lugar e se sujando. Ele teria passado um tempo para limpar, “para deixar a casa minimamente habitável”, como disse, sem podridão. Vale dizer que ele tem dois filhos pequenos e que já não suportava a dor de ver seu parceiro definhando há pelo menos um ano. Quando ele entrou no estúdio, senti a aura densa, de preocupação. Logo me relatou que estava há dias sem dormir direito. Perguntei se não queria marcar a tatuagem, que era um deleite só meu, para outro dia. Ele, de pronto, declinou da ideia. Aos poucos, desenhando, foi se empolgando com os traços e entrando na vibe. Soube, depois, que esse seria o dia da eutanásia do animal. Já havia ido ao veterinário e relatara que o caso era irreversível e grave; não havia alternativa, partiria para o sacrifício. No meio da tatuagem, por volta das doze horas, recebeu a ligação de um colega que ficara responsável por levar o cachorro para o bendito processo. Passaria na sua casa para pegar o grande Zion (o nome do cachorro). Meu amigo saiu para se despedir do cão. Fiquei esperando no estúdio, ansioso, sem poder, infelizmente, ajudar. Poucas palavras foram ditas para amenizar. Não tenho muito traquejo para essas coisas, mas fiz o possível. Demorou trinta minutos – ou uma eternidade, para quem espera, sem notícias. Pronto, o cachorro teria ido, tranquilo, para a aventura incerta, final. Na foto que meu amigo me mostrou, estava com o olhar sereno, quase dormia. Retomamos a tatuagem. Fiquei com receio de que meu amigo se dispersasse e perdesse a essência. Mas não, ele, quando começa a tatuar, entra em transe, pouco conversa, e fica vidrado, olhando as proporções da tatuagem. Mais uma parada para o almoço, e, na verdade, eu já não via a hora de terminar. O nome disso: ansiedade. Voltamos à tatuagem. Meu amigo mostrou-se conformado ao dizer que Zion teria cumprido seu papel de parceiro, tinha participado do nascimento dos filhos, da criação, e tudo isso estava guardado na memória. Às 16h, o rapaz trouxe o cachorro embalado em saco plástico preto. Acompanhei o velório, rápido, levando o corpo para o quintal da casa. Lá havia um buraco imenso – caberiam três cachorros. Chovia, no ambiente bucólico. Ajudei meu amigo a enterrá-lo, e não foi uma tarefa fácil. Ele preenchia o buraco com as areias laterais. O tempo fechou. Parecia que se aproximava, mais ainda, a noite. Dei um abraço no meu amigo: “Está feito. Amém!”. Zion está, decerto, no paraíso dos bichos, livre das amarras que o prendiam. É muito bom pensar em liberdade, ainda que seja assim.






Adriano Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, e em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, estes pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto. instagram: @adrianoespindolasantos | Facebok:adriano.espindola.3 email: adrianoespindolasantos@gmail.com