por Taciana Oliveira__
“Para aqueles que nunca tiveram dificuldade para engravidar pode gerar uma reflexão sobre o quanto é errado e inconveniente a pressão da sociedade sobre os casais para que tenham filhos”, reflete Karine. Para ela a feitura do livro representa a maior decisão de sua vida, que é justamente se dedicar à escrita. “Hoje posso dizer que sou escritora, não porque ganhei um prêmio ou porque tenho um livro publicado, mas porque foi a partir dele que tudo começou para mim”, revela. Karine garante ainda que a obra a transformou. “Passei a me sentir mais completa e mais feliz com o que faço”.
Adquira “Dentro do nosso silêncio” pelo site da editora Bestiário:
https://www.bestiario.com.br/livros/dentro_do_nosso_silencio.html
Capítulo 1
2008
Como sempre você está atrasado. Por um segundo, acredito que tenha desistido. A ideia vem tão fácil como uma vontade e antes que tome forma, prefiro não dar cabimento. Enquanto o aguardo na sala de reunião, folheio revistas de seis meses atrás, notícias de famosos que em nada impactaram a minha vida. Imagino que seu advogado entrou em contato no dia anterior para combinar os detalhes. Não que pudesse haver algum conflito, se desde o início sabíamos exatamente o que ficaria com cada um. A partilha financeira nunca foi um problema.
De acordo com o relógio por cima da mesa, após meia hora de espera, você e o Raul descem do elevador. Em nove anos, nunca o vi usando roupas engomadas em compromissos diurnos. E ali está, dentro de um terno cáqui e uma camisa branca impecável, em contraste com meu vestido reto e azul marinho de mangas três quartos. Se esta fosse uma ocasião social, definitivamente você ouviria alguns elogios. O que me faz pensar se existe uma intenção por trás dessa escolha. Mais uma vez, afasto tais considerações.
Paredes de vidro separam as diversas salas do escritório do Dr. Padilha. Quem está do lado oposto da entrada consegue ter uma visão ampla de toda a sua dimensão. Vejo quando você se dirige à recepcionista, enquanto o Raul atende uma ligação, e ao se virar para a direção oposta, presumo que as orientações não foram claras. Então você para em frente a jarra de água e se serve. Senta na poltrona ao lado, passa as mãos no cabelo e solta uma respiração profunda. Eu quase posso ouvir aqui do outro lado. Perco a conta de quantas vezes o vi fazer a mesma sequência de gestos. Em outras circunstâncias, sinalizando uma tentativa de se acalmar antes de retomar a discussão. Na maioria das vezes, não funcionara. Pelo menos, não no final. Seu olhar começa a correr todo o espaço até que me alcança. Eu me viro imediatamente, um tanto desajustada. E pouco tempo depois, vocês entram na sala.
- Ana, boa tarde.
- Boa.
Se não fosse pela assistente do Dr. Padilha, minha fala terminaria ali. Quando ela abre a porta, toda redonda nos seus oito meses de gestação, não consigo conter uma risada. Só pode ser a mais perversa ironia. E ainda assim, eu peço desculpas.
O diálogo fica com os advogados. Nós permanecemos calados em nosso conformismo. É um final de tarde em meados de março. Nunca vou esquecer da luz, da contradição entre o frio do ar condicionado e os raios de sol que atravessam a fachada espelhada. Eles incidem sobre as paredes e mesa, criando uma mistura de cores entre o pêssego e o salmão. De alguma forma, os feixes aquecem a sala e tornam o momento mais aceitável. Minhas mãos estão num branco que é possível notar as veias se entrelaçando. Estamos a pouco mais de um metro de distância e se eu esticasse o braço, você poderia segurá-las. Ao invés disso, trago-as para perto de mim. Percebo que não usa sua aliança, não que eu esperasse vê-la no seu anelar. Não uso a minha também. Ao invés delas, ganhamos uma marca em um tom a menos que nossas peles. Nosso silêncio me é estranho, apesar da frequência em que ocorreu nos últimos tempos, é outro tipo de silêncio, o que diz haver uma coragem das duas partes de deixar isto acontecer. Uma palavra e tudo poderia ser diferente. Não sei explicar como o processo em si transcorre, não me lembro bem. Enquanto os advogados leem as formalidades, meu olhar está perdido em algum lugar entre o Cais de Santa Rita e o Recife Antigo, uma vista privilegiada do trigésimo segundo andar do JCPM. Quando me dou conta, todos os papéis estão assinados e na minha cabeça uma voz grita. Um grito de protesto, ignorado.
Há uma leveza no ar, uma brisa fora de época. Estou em casa, agora somente minha. Tento lembrar da expressão nos seus olhos, em vão. Durante todo o tempo, mantive os meus longe de você. Não estava disposta a testar o limite entre minha força e minha fraqueza. Fecho a porta e me deparo com o de sempre, apesar de tudo parecer novo. Não consigo avançar. Olhando ao redor, percebo que o vento está prestes a derrubar o porta-retrato da mesinha lateral, logo o que exibe a foto da nossa primeira dança.
Não importa se os móveis e todo o resto ainda estão lá. Mais presente do que eles, há o vazio. O sofá sempre foi tão grande? Sobra tanto de mim aqui. Deitada, contemplo o teto a três metros de distância. Fiz questão de um apartamento em que pudesse ter um pé direito alto, tarefa quase impossível. Ele precisou recorrer à cobertura de uma construção antiga, e claro, colocar boa parte
da sua equipe, quebrando paredes e reformando todos os cômodos. Depois de pronto, afirmou ser o meu presente de casamento. Mas o que acabou sendo o maior de todos os presentes foi o que chamávamos de minha biblioteca, projetada alguns anos depois da reforma. Aqueles doze metros quadrados passaram a ser o refúgio de todos os dias. Nem a cozinha, onde eu posso testar todas as minhas receitas, exerce o mesmo efeito. Talvez porque ela não é um território só meu, como a biblioteca. Lá ninguém entra. As estantes ocupam três das quatro paredes. Uma delas eu reservo aos títulos de culinária. Sempre tive imensa dificuldade em me desfazer deles. Até hoje tenho meus primeiros exemplares, alguns de vinte anos atrás, quando ganhei o primeiro de todos. Lembro-me da empolgação que senti ao ser presenteada por minha mãe com uma edição em capa de couro do livro de receitas da Dona Benta. Encostado na metade inferior da parede, um pequeno sofá de dois lugares cor de terra, onde eu costumo ler. Ao seu lado, uma pilha de nove ou dez livros de capa dura dão forma à mesinha de canto ao mesmo tempo em que sustentam um pequeno abajur em formato de cogumelo. Do outro lado, uma estante disposta em retângulos uniformes do chão ao teto. Nela eu mantenho meus romances e novelas. Não existe ordem. São separados de forma aleatória, o que às vezes me custa alguns dias até encontrar um deles. Confesso que, assim que transferi todos os meus títulos para esse cômodo, cheguei a separar os autores entre clássicos e contemporâneos. Havia inclusive duas ou três prateleiras dedicadas apenas aos prêmios Nobel. Hoje é possível encontrar Jorge Amado, Beckett e Virginia Woolf, todos numa mesma pilha. Com a terceira parede, ele me impressionou. A pintura lembra um céu nublado em perfeita sintonia com o real. Mais tarde soube que a artista veio de Fortaleza somente para realizar o nosso projeto. Minha mesa fica ali. Sempre preferi os dias frios de chuva como os de minha infância.
Não foi de repente. Como se nos deitássemos e ao acordar, o caos estava lá. Foi um processo gradativo, tão silencioso que enquanto acontecia, não percebemos. Quando nos demos conta do estrago, o reparo se tornou impossível. Tudo de melhor que um dia houve entre nós parecia ter se esvaído. As conversas, as risadas, o olhar, a amizade. Rebaixamo-nos a categoria de estranhos. Essa foi a pior parte.
A ressaca do dia seguinte é a pior da minha vida. No minuto em que me deito no sofá, ligo o som. Ironic, da Alanis Morissette, começa a tocar, de um CD esquecido há alguns meses. E então elas vêm. Todas as lembranças dos últimos anos da minha vida. Como um castigo, lembranças tão fortes que me fazem amanhecer com uma baita enxaqueca. E talvez por não ter ingerido nenhum tipo de alimento sólido, o estômago reclama. Passo quase uma hora no banheiro, vomitando todas as dores e arrependimentos que sinto, misturados ao líquido verde de bile.
Só estou de pé há uns dez minutos, quando ouço a campainha tocar. Abro a porta e minha irmã passa direto por mim:
- Por que não atende o celular? – Ela usa uma roupa muito parecida com pijamas. - Estou ligando desde ontem à noite.
- Maria, por favor, fala baixo. Minha cabeça está explodindo.
Ficamos pela sala. Eu deitada com uma almofada no rosto, ela se movimentando entre o sofá e a varanda.
- Você bebeu?
- Não.
- Como não? E essa cara de ressaca?
- Eu não bebi. Só estou com um pouco de enxaqueca.
- Vim aqui para ver como você estava. – Ao mesmo tempo em que fala, pega algo em sua bolsa, dirige-se até a cozinha para encher um copo d´água e me entrega os dois. – Toma isso. Vai te ajudar.
- O que é?
- Aspirina. – Ela encosta na mesinha de centro em frente de onde eu estava. -E então? Como foi ontem?
- Nada demais. Não durou nem meia hora. – A verdade é que eu não faço ideia do tempo que passei naquele escritório. - Só assinamos e fomos embora. - Ana, sou eu. Eu sei que não foi como assinar um contrato.
- Então você entende que agora eu só quero ficar aqui deitada. Não estou a fim de conversar. – Enquanto eu falo, prefiro manter os olhos afastados dos de minha irmã e para isso, viro o rosto na direção do recosto do sofá.
Maria não é somente minha irmã mais velha, é minha melhor amiga. E se tem uma coisa que ela sabe fazer muito bem é apenas estar lá. Se eu não estou disposta a conversar nesse momento, ela respeita. Já passamos horas deitadas,
olhando o teto. Em certas ocasiões, por mim. Em outras, por ela. Devo admitir que, nos últimos tempos, faço mais uso da sua companhia do que ela da minha. Somos assim. Perdemos nossa mãe muito cedo e o velho Humberto é daqueles românticos incuráveis. Depois de se tornar viúvo, nunca quis voltar ao título de solteiro. Encontramos uma na outra um colo de mãe.
Desde que o Samuel saiu de casa, um eco se instalou em cada cômodo. É um constante aviso da solidão, de que não há ninguém para aguardar. Cada abajur, cada foto, cada detalhe dá vida ao lugar onde construiríamos nossa família. Lembro de uma tarde de domingo quando perdemos a noção do tempo fazendo compras de decoração. Havíamos adquirido o apartamento há poucos meses e estávamos eufóricos com a ideia de ter o nosso próprio canto. De todos os itens que compramos naquele dia, ele escolhera um pequeno cachorro de porcelana, um pug. Batizamos de Chinês. Deduzi que seria um dos poucos itens que ele levaria. Mas ainda estava lá, logo abaixo da TV da sala.
Conhecendo Maria bem, poderia estar esperando aquele convite há três meses, desde que ele foi para um hotel. A única diferença entre aqueles dias e hoje é o caráter permanente da minha moradia solo. Até ontem, era como se ainda houvesse uma possibilidade de reversão. Ele ainda poderia mudar de ideia. Ou eu. Agora estamos oficialmente separados. O pensamento de sair de casa já passou pela minha cabeça, apesar de preferir ignorá-lo em todas as ocasiões. Coração e mente entram em conflito. Morar com minha irmã significa abandonar minha casa. Claro que há o lado reconfortante da situação. Estaremos dividindo o mesmo teto mais uma vez e eu poderei estar a par da sua vida social, algo que ela sempre procurou manter com certa discrição. E o mais importante, eu a verei todos os dias. Na nossa rotina atual, conseguimos nos encontrar a cada uma ou duas semanas. Mesmo nos falando de segunda a segunda, ainda sinto falta de tê la por perto. Ponto para a mudança.
Então por que não quero sair daqui?