Hotel Toffolo, crônica de Luiz Henrique Gurgel

 por Luiz Henrique Gurgel__

                                   


Gosto de velhos hotéis e seus fantasmas. E estar sozinho numa noite vazia em Ouro Preto facilita encontrá-los. Tinha tido horas felizes num fim de semana recente, não havia feriado nem turistas. Uma cidade dessas só para você num domingo à noite é privilégio. Na rua São José deserta, zanzando à toa, vem a sensação de estar num filme. Só quem nasceu do século XX pra cá sabe o que significa. E como coincidências não existem, havia um único estabelecimento aberto, exatamente aquele que eu queria ver, o Hotel Toffolo. Pensando noutro clichê de cinema, era um portal do tempo.

Lá dentro só uma mesa com gente, dois homens e uma mulher, meio breacos. Atrás do balcão, nos fundos - com os famosos cavalos desenhados por Takaoka na parede - um homem de barba grisalha tomava sozinho a sua cerveja e olhava para a rua. Perto dele, na outra ponta do balcão, sentada meio escondida numa mesa de canto, uma menina com um abridor de garrafas na mão e um pano de prato no ombro, à espera de algum novo cliente perdido. Aceitei o papel.

Desde criança sonhava me hospedar ali, imaginando quartos largos, pé direito alto, assombrações, escadas e chão de madeira em que o piso range a cada passo ou a cada virada na cama.

Mais grandinho, com uma série de poemas na cabeça, quis levar um amor e me hospedar por lá com ela, que curtia as mesmas coisas que eu, os mesmos versos, os mesmos poetas, quase as mesmas histórias. Tinha o desejo de dormirmos juntos nalguma velha cama de mola, Cama Patente, e poder sonhar acordado com ela, imaginando que poetas poderiam ter respirado aquele mesmo ar pesado de história, de nuvens, de neblina. Mas ela jamais dormiu comigo lá.

Não, não me console, senhor hoteleiro, é só um amor que se perdeu no tempo presente, meu repasto também é interior, comeria meu próprio coraçãozinho de galinha num xinxim se assim me ordenassem as Escrituras. Tudo se come, tudo se comunica, tudo, no coração, é ceia. E aí, bestamente, a gente se esbalda em lembrar os versos do poeta predileto que poderia ter se sentado na mesma mesa em que se está naquele momento.

O hoteleiro estava na minha frente, rosto suave e sem o menor espanto por eu falar sozinho e lembrar versos pensados mais de meio século atrás exatamente ali. Deve estar acostumado com esse tipo de sonhador barato. Quando o percebi, sem graça, ele já sorria. Era neto do hoteleiro a quem Drummond escrevera aqueles versos. Anotou meu pedido, sempre sorrindo, e me deixou à vontade com os espectros.

Mais tarde, quando meu rosto deve ter se desanuviado, chegou perto delicadamente e puxou conversa. Professor aposentado de cálculo da Escola de Engenharia, herdara o hotel da mãe. Eu olhava para o salão vasto e vazio enquanto ele contava as histórias de cada mesa, “ali Tristão de Athayde contou a história de Drummond e Bandeira aqui no hotel”; “na mesa 12, aquela, Cecília Meireles começou a escrever o Romanceiro da Inconfidência”; “Vinicius gostava daquela mesa junto à parede e que dá pra ver a rua, ficava lá, livro na mão, cigarro na outra, copo de whisky sobre a mesa, solitário, medidativo...”

O espaço estava como há 50, 60, 80 anos. Eu me virei para os cavalos de Takaoka, testemunhas dinâmicas no silêncio do salão, continuavam a galopar incansáveis e bonitos na parede do fundo. Mas o tempo não parou ali, não. Muito pelo contrário, ali é que está mais vivo que nunca, firme, forte, sólido. Dessa solidez mineral, do metal mais puro, do ouro. Nessa atmosfera substanciosa, até os fantasmas tem peso, não são etéreos. Ou talvez sejam etéreos de uma firmeza que não sei explicar, como a da antiga neblina densa capaz de matar a fome, talvez por isso Drummond fale do “pão de nuvens” no seu poema sobre o hotel.

O velho professor e hoteleiro abre outra cerveja e entre risos e lembranças, pede para a Alexia – a coisa mais recente do restaurante – ir mudando a trilha sonora: Taiguara, Zimbo Trio, Milton Nascimento, João Bosco, Vandré...

Deixei escapar num momento, ainda consciente, que um amor é que me levara até ali. Na hora ele gritou para a máquina: “Alexia! Canto Triste com Edu Lobo”. Tentei balbuciar de novo, “Não, não me console, senhor hoteleiro...”, palavras não saíram.

Madrugada chegando e os olhos do hoteleiro mais vivos do que nunca. A moça garçonete já tinha se ido, assim como os três únicos clientes que estiveram ali antes de mim. Eu já entornara no gosto do meu pretérito mais-que-perfeito quatro cachaças e duas cervejas, as lembranças escorriam. Levantei e acenei, me despedindo do hoteleiro e de seus olhos vivos atrás do balcão. Não havia problema estar meio cambaio, se eu rolasse na próxima ladeira, talvez caísse na porta do quarto em que dormia.

O que sei é que no dia seguinte me garantiram que o Hotel Toffolo estava fechado para reforma fazia um mês que o hoteleiro viajara desde então. O pior é ninguém nunca tinha ouvido falar das minhas dores de amor.




Luiz Henrique Gurgel 
é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020) e "Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias" (Caravana Editorial, 2023)