Lydia, um conto de Alessandro Caldeira

 por Alessandro Caldeira__


Autor desconhecido


I 

Trancou-se no banheiro e olhou no espelho numa tentativa forçada de se reconhecer. Recordou-se, então, de quando morava com os seus pais e reparou que a sua antiga casa ainda era muito mais bonita: os móveis, o banheiro e até o cheiro do bairro era mais atraente do que aquele apartamento cinco estrelas que o seu marido havia comprado. 

Sentiu horror da forma como fora iludida e não teve outra reação a não ser chorar. A sua emoção a ensurdeceu como se mergulhasse no mar mais profundo; não ouvia os seus próprios gritos. Carlos, enquanto isso, batia na porta: “, você está bem?”. Sua pergunta, inicialmente, foi calma, talvez por ouvir o choro dela; Carlos tentava manter a calma perguntando repetidamente a mesma coisa; porém, agora, sorria nervoso, enquanto intensificava, a cada minuto a sua força na maçaneta: “Lýdia, não estou brincando!”. 

O barulho dos gritos de seu marido e o ruído que quebrava o silêncio de seu choro parecia, para Lydia, um alívio. Queria mesmo provocar o monstro que estava lá fora, queria se convencer de que não mais se importava com o que fizessem da sua vida, só que mais do que isso: toda aquela confusão fazia-a voltar para um tempo onde conhecera o pai de Carlos: Manoel Peixoto. 

Certa vez, segundo Lydia, quando tinha onze anos fora buscar goiaba em um terreno vizinho, até então desconhecido por ela; havia pulado o muro da sua tia Iza com bastante segurança, certa de que o pé estava há poucas distâncias do muro, porém, quando caiu do outro lado se viu presa em um matagal, com uma plantação desordenada e milhares de galhos já corrompidos pelo tempo. 

Lydia, no entanto, encarou aquele cenário como a sua primeira aventura, o olhar dramático dos primeiros minutos foi se transformando em uma onda de crescente interesse: pisava de galho em galho com delicadeza, esmero e paciência; quanto mais chegava próximo da árvore conseguia ouvir alguns murmúrios como se alguém estivesse falando sozinho tentando relembrar algum ato importante que fizera anteriormente. 

Agora, Lydia pensava em desistir; sua tia, provavelmente, já teria notado a sua ausência. Mas àquela altura, pensou, já teriam ligado para o seu pai, que a faria correr para o quarto lhe dando uma surra: “Que seja!”. 

Quando terminou os seus pensamentos encontrou um homem gordo, usando calças bege, camisa vermelha e branca listrada, chapéu de palha e botas, no entanto, só conseguiu olhar para a sua mão gorda segurando uma faca enquanto descascava batatas. Naquele momento sentiu vontade de correr, mas não teve forças. Foi como se aquele homem robusto, de mãos grossas e com algumas cascas no rosto tivesse jogado o peso do seu corpo por cima do seu até afundar naquela terra frouxa. 

Lydia começou a aceitar que aquele seria seu último dia devido às histórias que a sua família contava sobre Manoel Peixoto: um agiota que não tinha remorso em assassinar a sangue-frio quem quer que fosse que estivesse em seu caminho. 

Certa vez, por exemplo, contaram seus pais, Manoel emprestou dinheiro a um empresário falido da cidade e, ao não receber o pagamento no prazo, apontou a arma e exigiu que ele tirasse a roupa olhando para os vidros de seu carro. O empresário, por sua vez, perguntou se fizesse isso ele podia lhe deixar em paz, ao passo que Manoel respondeu afirmativamente. 

Ao agachar para tirar as calças, Manoel esmurrou a cabeça do empresário contra o vidro até parecer estar segurando um fantoche. 

Ele, então, finalmente perguntou: "Você é a Lydia, não é?. Embora pacífica, a sua voz a paralisou, os olhos, porém, se moviam como duas luzes prestes a se apagar. “Vamos, menina, me diga o que você quer?”, como que despertada de um sono profundo, ela respondeu, trêmula, porém direta: “quero as goiabas!”. Ele se levantou com um meio sorriso, pegou uma madeira com um gancho fincado na ponta e escolheu as melhores. Encheu a sacola e disse: “Leva”. Ela, por sua vez, segurou as sacolas com violência e correu. 

II 

Quando voltou para si, se perguntou se todo filho precisa mesmo ser parecido com o pai. Então isso quer dizer que toda a filha também se parecerá com a mãe. Bem, pelo que sabe de sua mãe, ela sempre fora a dona de casa, que cuidava dos filhos  enquanto o marido alimentava o seu hábito de ficar fora até de madrugada. Quando chegava em casa, porém, estava constantemente bêbado e dava umas esbofeteadas na cara de sua mulher para que ela "aprendesse", sabe-se lá o quê. 

Seria, então, um destino sem escapatória: Carlos seria seu marido bruto, controlador, provavelmente adúltero, transaria com ela do mesmo modo que um necrófilo e, ao final, dormiria na cama como um morto estirado no chão após a guerra. 

III 

Na hora do jantar com a sua família, seus pais, seus irmãos e seu marido conversavam alegremente, demonstrando verdadeiro apreço pela nova vida da filha e planejavam alguns novos negócios com Carlos. Segundo ele, a família precisava demonstrar tanta força econômica quanto a vizinhança, mas precisava firmar parceria com eles. 

Como? Perguntava para si, com o ar de entendido, trazendo as atenções do público. Observando essa cena, Lydia sentia vergonha da forma como seu marido fazia a sua família se interessar por tão pouco: "Precisamos nos unir a eles, disse Carlos.Seu Antônio poderia fornecer sofás às suas lojas como um gesto de parceria. É assim que ficamos ricos", explicou Carlos com um entusiasmo no canto da boca e sempre olhando Antônio Silva para ver suas expressões de satisfação. 

"Eu não sei, minha fábrica é muito pequena para aceitarem negócios desse tipo". "Mas os seus estofados são de qualidade.", replicou Carlos. Seu irmão, Tiago, querendo se envolver na conversa para demonstrar alguma inteligência financeira e apatia com as ideias de Carlos, considerou: "Sim, papai, seus estofados são ótimos e tenho certeza que os Bergamasco aceitariam a sua oferta". 

Lydia, que ainda tentava entender direito o que estava acontecendo, pensava: como eles todos ficaram tão íntimos? 

Meses antes o seu próprio irmão dizia querer dar um tiro na cara de Carlos por que não suportava a sua família, mas agora fala como se entendesse de economia e usava frases como: para ficar rico é preciso estar ao lado dos ricos. Lydia, que tinha tanta admiração pelo seu irmão, começou a sentir que algum monstro teria surgido durante os anos onde planejavam fazer dinheiro com os estofados do seu pai. Uma hora, durante o jantar, Tiago falou, nervoso, olhando para ela duramente como se tivesse atentado aos pensamentos de Lydia: por favor, irmã, não estrague isso que estamos construindo como qualquer outra coisa que você deixou para trás. 

Aquela família alegre começava a perturbar Lydia, até entender que toda aquela euforia não se tratava simplesmente do seu noivado com a possibilidade de fazer dinheiro sob influência de seu marido, mas seu irmão também tinha novidades: se casaria com Eliza, a irmã de Carlos. 

A surpresa dela não foi para menos. Ao ver os dois juntos, abraçados, atrás da mesa dando as últimas notícias, Lydia lembrou de quando eram crianças e o seu irmão, com raiva de Carlos havia perseguido Eliza pelos corredores do nosso bairro com uma pedra na mão, quando conseguiu a enclausurar numa viela sem saída atirou a pedra que atingiu em cheio a cabeça dela. Quando caiu desacordada, praguejou contra ela e a sua família, principalmente contra Carlos, desejando que ele morresse com a irmã. 

Lydia estava se sentindo cada vez mais deslocada como se todos tivessem feito alguma manobra para a enganarem, lhe persuadir, que, no fundo, o casamento não era mesmo para salvá-la da miséria como haviam combinado horas antes de seu casamento, mas que a sua família virassem sanguessugas tanto quanto os vizinhos ricos de seu bairro. 

IV 

Toda aquela situação provocava em Lydia a vontade de recuperar o fôlego e, ocasionalmente, como um ritual para espantar maus pensamentos, adquiriu um hábito que consistia em encostar-se na parede da sala, se agachar com as mãos na fronte como quem estanca uma ferida, puxar o ar e permanecer naquela posição por alguns minutos, com um olhar absorto feito um segurança vigiando o vazio. 

Lembrou-se, então, quando a sua amiga, Alessa, que fazia rabiscos em seu caderno durante as aulas de Química enquanto ela se esforçava para desenhar fórmulas estruturais de composto de cadeia aberta e fechada, mostrou seu nome contornado e na frente alguns de seus sobrenomes favoritos e repetia-os num sopro ao mexer os lábios: Alessa Ferrari, Alessa Rossi, Alessa Martins… parecia se divertir com a sensação de se imaginar com o ser amado, algo tipicamente feminino. Ao olhar aqueles rabiscos de sua amiga, raciocinou: ouvir o novo sobrenome era algo semelhante a alguém te absorvendo, te anulando. 

Em Lydia, porém, nunca lhe ocorreu fazer um exercício semelhante. Para ela, um sobrenome era apenas mais um sobrenome. Quando casou com Carlos, por exemplo, ela tinha dito que ao mudar o seu nome para Lydia Silveira não lhe ocorreu nada de especial. A única coisa que fazia era um exercício de análise lógica, nada fora do comum do que precisava fazer, por exemplo, na escola. 

Lydia não tinha a mesma preocupação de sua amiga porque, sobretudo para ela, um sobrenome não era uma herança do marido, mas apenas uma condição insuportável. Afinal, perguntava-se, o que significava essa mudança? Ela não será mais chamada pelo seu nome próprio? Seus filhos no futuro não seriam capazes de lembrar de seu nome e iriam até à casa de seus avós para poderem lhes informar o nome de sua mãe. Talvez se alguém a chamasse por Lydia, nem ela mesma se reconheceria; por isso, usaria, constantemente, o evocativo, Sra. Ferrari, Sra. Rossi, Sra. Martin, etc. 

Lia os sobrenomes dispostos naquelas linhas do caderno de sua amiga e imaginava algo semelhante a alguém te absorvendo, te anulando; como se não fosse mais possível ser identificada apenas como Lydia, mas sim como Lydia vai à casa dos Ferrari, se precipita até os Rossi ou se lança aos Martins. Não conseguia distinguir aquele exercício particular de sua amiga das fórmulas que a sua professora de Química lhe passara. Enquanto isso, Lydia lembrava de um antigo namorado que tinha delírios sobre ela ser a sua esposa e constantemente lhe chamava de minha mulher tentando antecipar o destino dos dois. Havia nisso um certo desespero que, para Lydia, era motivo de ficar alerta com o seu futuro. 

Em uma conversa entre eles, seu namorado a questionou se ficaria para sempre com ele, porém, ela lhe perguntou de volta se era realmente necessária a pergunta e se precisava ser para sempre. 

Ele, no entanto, ficara ofendido com o tom que Lydia colocou naqueles questionamentos e então começou a acusá-la de ser depravada por querer mais homens ao lado dela. Nesse instante, ele colocou a mão no pescoço de Lydia, acariciou-a pelo rosto e disse, melancolicamente: quero me casar com você. Ao que ela, mais uma vez taxativa de uma maneira que só ela conseguia fazer, perguntou: você quer casar comigo ou me matar? 

Afinal, o homem que impôs esse desejo a ela era o mesmo que outrora disse que se interessava apenas em mulheres que há vinte anos não são fodidas. Segundo ele, era como se estivesse redescobrindo o sexo: elas são mais aptas a aceitarem qualquer tipo de posição na cama como jovens desesperadas. 

Desde então, Lydia percebeu qual a causa de um novo sobrenome: a absorção e aniquilação do que ela era anteriormente, o que antes era raro e valioso como uma relíquia vai se precipitar até se tornar uma pessoa só. 

V 

Ela gostaria, sim, de ser rica, por isso se casou com Carlos. Mas percebam que não era pelo dinheiro, Carlos também precisava melhorar a sua situação financeira, mas havia nele, alguma atitude que deixava Lydia segura e que a fazia crer que, ao lado dele, o sonho de enriquecer seria perfeitamente realizado. 

Na festa de seu casamento, porém, ela ainda tinha a lembrança de quando foi para um dos bairros nobres de São Paulo, onde confessou que lhe perturbou como se sentiu deslocada com aquelas mulheres de lebronstein e chapéu-coco. 

Ela me perguntou, apreensiva, se eu me lembrava da cena das mulheres passando entre nós como se não existíssemos e queria ter a certeza que, agora, com um marido rico também se situava à altura daquele lugar. 

Por ser a minha amiga, disse que sim, que aquilo já era passado e que dessa vez ela tem tanto dinheiro quanto elas. Menti. A verdade é que eu sabia de algo que nem mesmo Lydia era capaz, porque isso só aprendi não no nosso bairro, mas na faculdade de Direito: todas as meninas ricas me causavam uma certa irritação e sentia inveja delas, mas não se tratava de querer ser como elas porque mesmo que alguém do nosso bairro pudesse, um dia, conquistar a mesma fortuna ainda assim nos manteríamos inferiores uma vez que a superioridade dessas mulheres nobres era algo natural, quase sem querer. Elas não tinham culpa e, com certeza, não pensavam na gente.



Alessandro Caldeira é jornalista, santista e nas horas vagas prefere postergar qualquer um desses títulos para se dedicar à literatura, música e cinema.