O trauma e a modernidade na poesia feminina contemporânea, ensaio de Ariel Montes Lima

 por Ariel Montes Lima__



                  

O TRAUMA E A MODERNIDADE NA POESIA FEMININA CONTEMPORÂNEA: UM BREVE OLHAR SOBRE A ARTICULAÇÃO LINGUÍSTICA DA CRIAÇÃO LITERÁRIA


1.INTRODUÇÃO

Alguns dias atrás, refletia acerca da necessidade de, por vezes, esvair-me na escrita de algo mais livre; de criar algo que pudesse extravasar para além das convenções estreitas do artigo, mas sem deixar-me totalmente à deriva. Allor, voialà: l’essay, c’est le melier genre textuel pour ça mission.  Este ensaio, dessarte, apresenta uma reflexão acerca da relação entre a articulação linguística e sua relação com a poesia feminina contemporânea. Para seu desenvolvimento, emprego análise de corpora, constituída por poemas de três escritoras contemporâneas. 

Reconhecendo, dessarte, as limitações inerentes a esse gênero, próprios das experimentações e ideias, e da própria maturidade acadêmica da presente pesquisadora, pretendo levantar algumas questões que julgo relevantes para a referida discussão. 

2.DESENVOLVIMENTO

Os primeiros poemas a serem analisados são de autoria de Emília Souza. A autora nasceu

[...] em 8 de março, há 40 anos, numa pequena cidade mineira, [...] passou a infância na roça, rodeada por linguagens, realidades, crenças e dinâmicas absolutamente diferentes das tantas outras que conheceria ao longo dessas quatro décadas. É graduada em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda pela Facamp e, no momento, atua como roteirista audiovisual.

Na literatura, estreou na poesia com o livro “Vem segura a minha mão”, publicado pela Editora Patuá 2023, e faz parte do “Coletivo RuídoRosa”, formado por autores de todo o país. Inclusive, está entre as 14 autoras que publicaram o primeiro e-book do coletivo “Diários Afluentes – 7 dias, 14 mulheres”, disponível na Amazon. (SOUZA, s.n.) 


Abaixo reproduzo os textos selecionados da autora em sua integralidade:


páscoa


coberta de sangue

do alto de um sustento frágil

a primeira visão do mundo

de ponta-cabeça

tremendo de um medo que nem era meu

a sentença

o útero primeiro ainda sangrava

quando o derradeiro foi anunciado

atraídas pela ferida aberta

moscas praguejavam — vai morrer

e morri

quinze anos ensaiando morte morrida

pra morrer de morte matada

de seio exposto

santa ágata não foi por mim

debaixo de um céu sem via-láctea

rá não amanheceria de minhas entranhas

uma moeda na boca me guia à porta do hades

atirada ao duro chão dos infernos

nua e curvada

no sétimo portal avistei inanna

não mais crucificada

rompi o solo em encarnada papoula

do jardim de perséfone


*

anjo da guarda


é segunda-feira

tomo meu café puro perto da janela do 4º andar

[o vidro está fechado

os ventos de agosto me assustam]

antes do último gole me deparo com a imagem de evelyn mchale


a morte


tenho pensado nela

não é que eu queira é que tem sido inevitável

semana passada ela esteve aqui ao lado [e eu não a ouvi]

[ou até ouvi mas confundi com um barulho qualquer do cotidiano]

talvez eu tenha pensado a morte de maneira errada a minha vida toda


desde sempre

há uma presença que me acalma

em noites de angústia

rogo pra que se sente aos pés de minha cama

só assim posso adormecer em paz

na catequese aprendi a chamá-la de anjo da guarda

mas talvez o nome certo seja azrael


a morte


filmes e livros de terror [incluindo a bíblia]

me fizeram acreditar em uma figura impessoal monstruosa

uma desconhecida espalhafatosa que chega de súbito aos brandos

mas não é verdade

que ultraje seria


a morte


é nossa fiel companhia no intervalo entre um ventre e outro

[está comigo enquanto escrevo e está contigo enquanto lê]

é a companheira que melhor me conhece

quem de mim tudo sabe e guarda

não há barulho em sua chegada porque sempre está


deixemos de resumi-la a tão breve instante

ela está no último suspiro tanto quanto em todos que o antecedem

morremos em cada instante de vida

cada suspiro lágrima ou riso

deus eu não sei

mas a morte

essa sim é conosco

*

antropofagia


era o fim

a guerra havia acabado

cessaram as estratégias

as armadilhas foram desativadas

havia vencido

hora de comemorar


diante de si

o corpo abatido

do guerreiro mais admirado da outra tribo


como manda a tradição

rompeu-lhe as entranhas com uma estaca

fincou o empalado o mais alto que pôde

pra que todos vissem o despojo de sua última batalha


afastou folhas e pedras do chão

sem pressa

preparou a fogueira com troncos de aroeira

deitou o corpo sobre o fogo

sustentado por dois ganchos de madeira enterrados no chão


viu as labaredas lamberem a pele

até as camadas mais profundas

devorou as partes que desejava incorporar

e descartou o resto

era o fim

precisava se apaixonar de novo

*

nudez


sinto falta das nossas conversas

sobre política arte traumas

ainda despidos


naquela época

fazíamos bastante isso

ficarmos nus diante do outro

*

a poesia

assim como as mulheres

não tem obrigação nenhuma de ser suave

(SOUZA, s.n.) 


É possível observar que os poemas de Emília Souza mergulham na experiência traumática da violência. Através da evocação de imagens quase tremendistas como sangue, morte, e a sensação de medo profundo, a narrativa da morte imposta e a referência a figuras mitológicas como Santa Ágata e Inanna intensificam a atmosfera de trauma e dor, agindo como evocações de uma sina mítica (PESAVENTO, 2006) e, ao mesmo tempo, concreta. 

A figura do "Anjo da Guarda", assim, aborda a morte de forma íntima e inevitável, antiteticamente oposta à visão habitual da morte como algo monstruoso. Dessa forma, o poema sugere uma relação mais pessoal e até reconfortante com a morte, representada como uma presença constante e até mesmo necessária para o sono tranquilo.

Com efeito, a violência é retratada nos poemas de maneira ritualística e culturalmente aceita, através da celebração da vitória sobre um inimigo. A descrição detalhada do processo de empalamento e consumo do corpo reflete uma visão brutal da violência como parte da tradição e do triunfo, podendo aludir a uma ambiguidade própria do humano: a disputa imanente de Eros e Tanatos como descrita por Freud (2013). 

Nesse sentido, a desconstrução da linguagem é evidente em diversos pontos dos poemas. Em diversos momentos há um fluxo narrativo fragmentado, com frases curtas e imagens fortes que contribuem para a sensação de desorientação e desespero. Se percebe, portanto, que esse uso, somado a uma estrutura de linguagem fluida, com versos quebrados e uma progressão narrativa não linear reflete a própria condição de angústia (Angst) experimentada pelo eu-lírico, criando uma sensação de desequilíbrio e confusão. 

Assim, a relação entre a desmontagem estrutural da língua e a vivência traumática é bastante forte nos poemas analisados. A quebra das convenções linguísticas parece refletir a própria ruptura e fragmentação da experiência traumática; o que se poderia relacionar -em conformidade com Souza (2018), por exemplo- com a própria experiência traumática da pessoa escritora. Essa desestruturação pode ser vista como uma tentativa de capturar a complexidade e a intensidade das emoções envolvidas, transmitindo não apenas o conteúdo dos traumas, mas também as formas como eles afetam a percepção e a expressão do eu lírico e, mais especificamente, em alguma medida, acessar ao trauma coletivo infligido sobre os corpos femininos viventes em nossa sociedade estreitamente patriarcal. 


Os próximos textos a serem comentados são de autoria de Marise Hansen, quem é

poeta, autora dos livros Porta-retratos (2015, Ateliê Editorial), A Palavra acre (2022, Patuá) e do perfil @poesiagora (IG).

Doutora em Literatura Brasileira (USP). Professora de Literatura; FFLCH – USP e UNIVESP.

Coordenadora da Motirõ, Escola de Criação Literária da Oceanos Cultura.

Participação no volume “Contemporâneas” da revista de poesia Vidas Secretas, nas antologias Ruínas, (Editora Patuá) e Mulherio das Letras Portugal 2020 (In-Finita), entre outras (HANSEN, s.n.). 


À continuação, reproduzo os poemas da referida autora: 

Um poema para quando


(Atenção: este poema é para quando

Você tem de fazer tudo

E o que você faz é nada

Para quando

Você quer abraçar o mundo

E as mãos estão amarradas).


Um poema para quando

A esquina é muito longe

E o minuto é muito longo

Para quando

O que você tem é muito

Mas outros dizem “nem tanto”.


Um poema para quando

O cansaço é maior que a fome

Você dorme e ronca mais que a barriga

Para quando

Você quer dizer “te amo”

E não há tradução na língua.


Um poema para quando

Tudo o que resta é gente

Feroz ou indiferente

Para quando

Tanta gente diz nada

Comovente ou relevante.


Um poema para quando tudo.

Um poema quando tudo para.

*

Rosa casa concha


Rosa

Casa

Concha e tudo o que se abre

E fecha


Lua

Nuvem

Ave e tudo o que flutua

E passa


Mar

Lágrima

Riso e tudo o que deságua

E limpa


Gato

Livro

Vinho e tudo o que aquece

E voa


Sonho

Cama

Corpo e tudo o que distrai

E ama


Medo

Credo

Tédio e tudo o que amordaça

E mata.

(HANSEN, s.n.).


Os poemas escolhidos abordam a sensação de impotência e frustração diante das limitações e das expectativas não correspondidas. Os referidos textos aludem à exaustão emocional e física de tentar, de querer mais, mas sentir-se impedido ou desencorajado, algo -desafortunadamente- visto à exaustão ao longo da história das mulheres nas sociedades ocidentais (SILVA, 2005). 

O poema Rosa casa concha aborda as questões referentes à vida e suas dualidades. Esse texto apresenta elementos naturais e simbólicos para representar ciclos de abertura e fechamento, fluidez e estabilidade, calor e movimento versus frieza e estagnação. Através de uma estrutura simétrica e equilibrada, com a repetição de padrões que refletem a ideia de ciclos e movimentos cíclicos na natureza e na vida humana, a linguagem é movimentada com vistas a evocar imagens sensoriais e metafóricas.

O texto Um poema para quando, por sua vez, possui uma estrutura marcada pela repetição de estruturas – como "para quando"- e pela alternância entre versos curtos e longos. Semelhante técnica contribui para criar um ritmo que ecoa a sensação de espera, de hesitação e de confronto com a inércia, metaforizando, por meio da disposição dos versos, o próprio movimento de ir e retroceder. 

A relação entre a desestruturação linguística e a temática é bastante pronunciada nos referidos textos, pois, enquanto o primeiro faz uso de uma estrutura mais fragmentada para transmitir a sensação de bloqueio e impotência, o segundo utiliza uma estrutura mais estável e simétrica para explorar a harmonia e os ciclos da vida. 

Enfim, os últimos poemas a comentar são de autoria de Divanize Carbonieri, a qual

[...] é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo e professora de literaturas de língua inglesa na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). É autora dos livros de poesia "Entraves" (2017), agraciado com o Prêmio Mato Grosso de Literatura, "Grande depósito de bugigangas" (2018), selecionado pelo Edital de Fomento à Cultura de Cuiabá/2017, "A ossatura do rinoceronte" (2020) e "Furagem" (2020), além da coletânea de contos "Passagem estreita" (2019), selecionada pelo Edital Fundo 2019/Cuiabá 300 anos. No Prêmio Off Flip, foi finalista na categoria poesia nas edições de 2018 e 2019, e segunda colocada na categoria conto na edição de 2019. Também foi finalista no 3o Concurso da Editora Lamparina Luminosa em 2016. Atua ainda como tradutora, tendo participado da tradução de "Hind Swaraj: autogoverno da Índia" de Mohandas Gandhi e "100 Grandes poemas da Índia". Integra o Coletivo Literário Maria Taquara, ligado ao Mulherio das Letras - MT (CARBONIERI, s.n.). 


Abaixo, estão reproduzidos os referidos textos, que (cumpre destacar) formam parte do livro Entraves, cujo título provém do 1º poema: 

ENTRAVES


no afã de desligar o liquidificador

deslocou o tendão de aquiles

depois de ter lesionado a coluna

ao acionar o interruptor da lâmpada

tendo dilacerado a hérnia inguinal

ao colidir com a máquina de lavar

foi só estancar a hemorragia fluida

e distensionar o músculo deltoide

para desarrolhar o gargalo oblongo

espirrando o espesso licor no olho

até conter a lágrima no pó compacto

mais uma quina a estraçalhar seu pé

um talho rasgado em plena epiderme

não é qualquer falha de caráter que torna

arrastado o existir por entre trastes

é o completo sequestro da sanidade

que arruína para sempre toda a chance

de se desentulhar os últimos entraves


ESPORÓFITO


o machado no pescoço

osso passado na lâmina

a anima solta e valente

rente ao nodo da garganta

se agiganta mais ao golpe

torpe mas gentil da foice

que ceifa a linfa da vida

entretecida na carne

no cerne rosa da fé

um igarapé de sangue

mangue verde do espírito

esporófito da sina

assassina do vivente

(CARBONIERI, s.n.).

O poema Entraves aborda a fragilidade do corpo humano e a vulnerabilidade diante de situações cotidianas que podem resultar em lesões e ferimentos. Ele retrata a série de eventos que levam a uma sequência de acidentes, que podem ser lidos como uma metonímia da própria fragilidade inerente ao ser. A estrutura do poema, desprovida de marcações gráficas de pontuação, reflete a sensação de caos e desordem causada pelos acidentes narrados, além de abrir certa margem à leitura individual. As frases curtas e diretas, sem uma ordem lógica aparente, criam um ritmo frenético que espelha a agitação e a confusão dos eventos descritos.

Quanto ao poema Esporófito, esse apresenta uma visão mais intensa e poética da mortalidade e da violência contra o corpo. A imagem do machado no pescoço e da foice ceifando a vida evoca a ideia da fragilidade da existência e da inevitabilidade da morte. O texto explora uma linguagem mais elaborada e simbólica, com metáforas que exploram a relação entre a vida e a morte, a natureza e a condição humana. Seu estilo de escrita desprovido de sinais de pontuação, assim como no anterior (e em outros de mesma autoria), corrobora para a abertura interpretativa para o leitor.  

Em síntese, ambos os poemas exploram a fragilidade e a vulnerabilidade do corpo humano e, em uma intensa medida, a violência que atravessa nossos corpos. Em especial, cite-se, os corpos femininos (SOIHET, 2002). A desestruturação da linguagem, destarte, contribui para a expressão dessas temáticas, criando uma atmosfera de urgência e reflexão sobre a condição humana e sua vulnerabilidade diante do mundo.

3.CONSIDERAÇÕES FINAIS

À conclusão do presente texto, foi possível perceber que a escolha da organização linguística está intimamente ligada ao proposito poético da pessoa autora. Afinal, em todos os poemas, a estrutura linguística é usada de forma significativa para transmitir a complexidade das experiências traumáticas e das questões femininas abordadas. A desconstrução da linguagem, a repetição rítmica, a linguagem simbólica e a estrutura caótica são elementos que intensificam a expressão do trauma e a reflexão sobre a feminilidade em contextos de vulnerabilidade e adversidade.

Em parte, podemos relacionar essa movimentação: 1) ao próprio esforço formal de escrita, tomando a ação mecânica de representar, no escrito, uma experiência estreitamente subjetiva e 2) na relação pessoal da pessoa autora com a vivência que aborda em seu texto poético. Assim sendo, e tendo claros os limites que me são colocados por este gênero textual que adoto, poderia teorizar que a relação referenciada em 2) é sumamente relevante no campo dos estudos da poesia feminina contemporânea. Afinal, essa poética emerge de uma conjuntura extremamente marcada pela violência de gênero e per se, por sua própria existência, se opõe a ela. 


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REFERÊNCIAS 

CARBONIERI, Divanize. Seis Poemas de Divanize Carbonieri. Revista Ruído Manifesto. Disponível em: Seis poemas de Divanize Carbonieri - Ruído Manifesto (ruidomanifesto.org). Acesso em: 07 abr. 2024.

FREUD, Sigmund. Freud-As pulsões e seus destinos–Edição bilíngue. BOD GmbH DE, 2013.

HANSEN, Marise. Dois Poemas de Marise Hansen. Revista Ruído Manifesto. Disponível em: Dois poemas de Marise Hansen - Ruído Manifesto (ruidomanifesto.org). Acesso em: 07 abr. 2024. 

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cultura e representações, uma trajetória. Anos 90: revista do Programa de Pós-Graduação em História. Porto Alegre. Vol. 13, n. 23/24 (jan./dez. 2006), p. 45-58, 2006.

SILVA, Glauce Cerqueira Corrêa da et al. A mulher e sua posição na sociedade: da antiguidade aos dias atuais. Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar, v. 8, n. 2, p. 65-76, 2005.

SOIHET, Rachel. O corpo feminino como lugar de violência. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, v. 25, 2002.

SOUZA, Ana Paula de. A escrita e a função social do romance de memória contemporâneo: Sefarad (2001) de Antonio Muñoz Molina. Tese de Doutorado. Unicamp. Campinas: 2018. 

SOUZA, Emília. Poemas de Emília Souza. Revista Ruído Manifesto. Disponível em: Poemas de Emília Souza - Ruído Manifesto (ruidomanifesto.org). Acesso em: 07 abr. 2024. 



Ariel Montes Lima
 é pessoa trans non-binary, psicanalista e professora. Em 2022, publicou os livros Poemas de Ariel (TAUP), Sínteses: Entre o Poético e o Filosófico (Worges Ed.) e Ensaios Sobre o Relativismo Linguístico (Arche).