por Taciana Oliveira__
Karina é apresentada como uma jovem sonhadora que, após a morte do pai e os desregramentos da mãe, é expulsa de casa. Ela encontra Rose, que desde a infância conhece a miséria. As duas enfrentam vitórias e quedas enquanto passam por diferentes cidades, apenas identificadas por iniciais.
Jean Soter, natural do interior de São Paulo, vive no Rio de Janeiro desde 2009 e tem uma carreira literária de mais de 20 anos. Seu processo de escrita é descrito como difícil e trabalhoso, mas gratificante. Entre suas influências estão Dostoiévski e Graciliano Ramos. Além de “Noites Cruas”, Soter é autor de “A Transferência” e “O Vendedor”, e atualmente trabalha em um novo romance ambientado no Rio de Janeiro.
Trechos do livro
Trecho 1
O strip de estreia de Karina coincidiu com a presença no Tifanys de uma meia dúzia de executivos estrangeiros a trabalho na cidade. Eram quase todos altos, corpulentos, de pele muito branca que o álcool avermelhava logo nas primeiras doses.
A noite foi agitada, como há muito tempo não se via na casa. Ramon havia encomendado uns folhetos de divulgação a uma gráfica, e uma semana antes começou a distribuí-los discretamente pelas ruas, entregando-os a homens que julgava de boa aparência, em restaurantes, cafés, porta de hotéis. Anunciava: “Noite de gala no Tifanys, o oásis da fantasia! As mais belas garotas! Show de strip com Karina Tsunami!”. Karina chegou ao palco envolta em um roupão de linho. Subiu o degrau, entregou o roupão nas mãos de Ramon, a música começou…
***
Nas cinco noites seguintes, os estrangeiros retornaram à casa, trazendo mais colegas, até mesmo alguns da cidade, que não conheciam o Tifanys. Foi uma semana gloriosa. O uísque corria fartamente, as mulheres gargalhavam… Não houve garota que não conseguisse programas, e Sofia desmanchou a habitual carranca. Dançando para a plateia internacional, com o status de estrela da casa, e com o preço do programa levado às alturas, Karina parecia imersa em uma atmosfera de sonho. Parecia-lhe que uma festa se reiniciava a cada noite, e o tempo corria loucamente, num ritmo em descompasso com a realidade…
Trecho 2
Pegou fogo no capim braquiária à beira da rodovia, e a brisa levou a fumaça para debaixo do pontilhão, onde estava Rose. Como a brisa era imperceptível, tinha-se a impressão de que a fumaça se deslocava por vontade própria, chegando ali ao abrigo do pontilhão — onde não havia sol quente, nem capim para queimar — por uma espécie de capricho do mundo inanimado.
Tempo seco de meio de ano. Não havia uma nuvem no céu. O sol estava ardido, mas já na penumbra do entardecer, começava a fazer frio e, à noite, gelava.
Apareceu uma mulher ali, para fazer companhia a Rose. Veio de cima, descendo com cuidado o barranco do pontilhão, como quem vinha da rodoviazinha transversal, de pista simples, que passava por cima ali no cruzamento com a rodovia interestadual, esta de pista dupla. Era uma mulher de uns cinquenta anos. Chegou do outro lado da rodovia, mas a atravessou logo, para pedir um cigarro a Rose.
Rose deu o cigarro, mas não ofereceu fogo, e essa cortesia pela metade transmitia a seguinte mensagem: Está aqui o cigarro, mas a nossa conversa termina por aqui, certo? Ficou observando a mulher, com olhar altivo. Quando recebeu o cigarro, a mulher agradeceu e sorriu, um sorriso frouxo e silencioso, e Rose viu que lhe faltavam dois dentes na frente. Era branca, um pouco alta, magra e ossuda, os cabelos vinham-lhe quase à cintura, e parecia ter a pele mais envelhecida que o resto. Mas devia ter sido bonita, na juventude: no meio daquele rosto judiado pela miséria, tinha os olhos azuis como topázios.
A fumaça do capim queimando ardia nos olhos, forçando Rose a fechar os seus, ao mesmo tempo em que prendia a mochila entre as pernas, por desconfiança da recém-chegada. O cheiro de fumaça devia estar pegando na roupa, e Rose sentiu urgência em sair dali. Aproximou-se mais da pista, colocou mais veemência nos gestos, no braço estendido, punho fechado, polegar apontando no sentido em que passam os veículos, para a frente, para a frente sempre…
A mulher a observava fumando, encostada à estrutura de cimento do pontilhão. Rose tirou da bolsa um batom, passou-o nos lábios.
— Me empresta esse batom aí, colega?
Rose olhou para a mulher, sentindo aumentar o desprezo. Uma mulher que não tem um batom, eis aí o cúmulo da miséria! É pior que não ter o que comer. Rose não suportava a companhia de gente em pior situação que ela própria, mas sempre havia um degrau mais abaixo, e o destino insistia em colocar essa gente no seu caminho…
Trecho 3
Durante a viagem, novas contrariedades: não seguiram direto a N…, mas entraram em outras três cidades, no caminho.
Em cada cidade dessas, a caminhonete parecia guiar-se por um critério previamente definido: circulava por fora, nas últimas ruas dos subúrbios, e com base em alguns pontos de referência — o boteco azul, a bicicletaria, o mercadinho, a pista do jogo de malhas — buscava algum endereço conhecido, que ao fim calhava sempre de ser a casa mais pobre, do que parecia o quarteirão mais pobre da cidade. Chico então descia e batia palmas. Dentro em pouco, surgia uma mulher, conversavam rapidamente, e a mulher voltava para dentro de casa. De dentro da caminhonete, fumando um cigarro, Jeremias indagava:
E então?
Ela disse que vai.
Depois de um tempo, a mulher voltava com umas roupas dentro de uma sacola desbotada de loja, que fazia às vezes de mala, e entrava na caminhonete.
Essa mesma cena se repetiu, com pouca ou nenhuma variação, em cada uma das três cidades em que entraram. E desse modo, a partir dos cinquenta quilômetros de viagem, Rose viu-se apertada com mais outras três mulheres no banco de trás.
Depois de uma viagem longa e silenciosa — Jeremias e Chico conversavam pouco, e as mulheres nem se conheciam —, chegaram finalmente ao lugarejo de N…, com a caminhonete sacudindo sobre o calçamento irregular da avenida central, que tinha entre as duas pistas uma imponente fileira de palmeiras imperiais.
Era fim de tarde. Naquele meio de semana, não havia ou- tros forasteiros na cidadezinha turística. Em minutos chegaram ao destino, um casarão de dois andares, de arquitetura elegante, mas decadente e malcuidado, com a pintura externa esfarinhando em alguns pontos, soltando lascas em outros.
A caminhonete embicou no portão, que Chico desceu para
abrir.
Uma das mulheres — uma pretinha magra e dentuça — se impressionou:
Que mansão, hein?
Rose observava, calada. Outra mulher, um pouco mais velha que as demais, parecia já conhecer a casa, e comentou em voz baixa:
A cerveja aqui não acaba nunca.
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Jean Soter (@jeansoterescritor) é autor de "Noites Cruas" (editora Labrador, pág. 192) e das coletâneas de contos A Transferência (2007) e O Vendedor (2018). Trabalha como autônomo no mercado de ações; nos intervalos lê e escreve literatura. Natural do interior de São Paulo, onde nasceu em 1974, vive no Rio de Janeiro desde 2009.