São Tilelê, crônica de Renata Meffe

 por Renata Meffe__

Ficou nu em praça pública ao abrir mão da fortuna do pai. Deixou para trás casa, macarronada da mamma e roupa lavada (inclusive a do corpo) e botou o pé na estrada. O pé mesmo, pois andava descalço. Sua viagem era estar em contato com a natureza, contemplando o pôr do sol, ouvindo o gorjear dos passarinhos. Giovanni di Pietro di Bernardone, antes de ser o canonizado São Francisco, já era hippie.

O comentário geral em Assis era de que o filho do rico comerciante de tecidos Pietro Bernardone teria perdido o juízo. Chico havia abdicado dos bens da família e demais mordomias para seguir errante nos campos e florestas, junto aos bichos. E ainda por cima — anjinhos barrocos me mordam! — trocava ideia com pombas e pardais. Seu hoje famoso “Sermão das aves” começava assim: "Minhas irmãzinhas aves…¨

Além de ser dos hippies mais veteranos da história (por coincidência celestial, a cidade californiana meca do movimento leva seu nome), São Fran também foi pioneiro no campo do ambientalismo. Oito séculos antes dos anos 80, ou seja, faltando ainda oitocentos anos para que o termo ecologista se popularizasse, ele já se preocupava com o bem-estar das espécies, via os demais animais como seus amigos — e não como vulneráveis entidades a serem exploradas — e respeitava o entorno natural. Se a humanidade tivesse lhe dado ouvidos, não estaríamos tendo que lidar agora com as presepadas do antropoceno. E talvez, enquanto escrevo este texto, eu nem transpirasse tanto no meio de uma terrível onda de calor que faz do Cerrado um forno em pleno mês de maio. 

Como se poderia esperar — tanto de um hippie como de um santo — o filho rebelde dos Bernardone era também pacifista. E dos bons. No discurso e no exemplo. Teve paciência com o povo da Umbria que o chamava de maluco e fundou a Ordem de São Francisco, na qual todos conviviam em harmonia, numa rotina simples de comunidade alternativa.

Em tempos de guerras covardes e intolerância religiosa (como, aliás, têm sido todos os tempos) as palavras do mais hippie dos santos — e, provavelmente, mais santo dos hippies — merecem ser lembradas: ¨Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz¨. Pura paz! Puro amor! 

P.S: Hippie ou rapper? No São Francisco de Pedro de Mena (imagem que ilustra este texto), o que predomina é a estética do hip-hop: a escultura do final do século XVII apresenta MC San Chico de capuz, com as dobras da túnica magistralmente talhadas em madeira policromada, lembrando um moletom bem folgado. Mas esta já seria outra história…

Renata Meffe - Jornalista, fotógrafa, documentarista, tradutora, professora & cronista. Sim, somente atividades altamente rentáveis. Escrevo ensaios que jamais estreiam.