Trechos do romance A finitude das coisas, de Nélio Silzantov

 por Nélio Silzantov__




Trecho 01:

“Se cada geração traz consigo os germens de sua sucessora e as cicatrizes de ambas se tornam marcas de nascença indeléveis, me pergunto em que tipo de Frankenstein nossos antepassados nos tornaram e o que há de ser dos nossos descendentes. Família, pátria e religião. Há mais podridão no seio da santíssima tríade do que os que a romantizam queiram testemunhar. Mas aqui estamos. Apesar do nosso sangue jorrando em cada esquina, beco, alameda, rua e avenida. Aqui estamos todos, sobreviventes ou não. Memória vívida de nossos delírios. Entrega total e definitiva da nossa existencialidade. Humanos por definição. Imperfeitos. Condenados a sermos livres. Pela vontade ou pela força. Havíamos chegado até ali, apesar de nós mesmos e de todos ao nosso redor. (Dizem que eu tenho sorte de estar vivo. Sim, eu e todos os outros. Junto com você e todos os outros). Mas a esperança de um futuro melhor para a minha geração era tão ilusória quanto as ilhas metaforizadas por Hannah Arendt. Durante aqueles instantes de desespero e apreensão em que eu me encontrava, junto com Pavarotti e Annibal, ao vermos Erik em convulsão na calçada do Cemitério, o futuro tornou-se um oceano de incertezas infinitamente maiores. Independentemente do nosso apreço por velhas concepções teleológicas, o vaticínio proferido por Annibal dizia que, em dez anos ou menos, um de nós quatro cometeria suicídio, outro morreria de overdose, cirrose ou qualquer outro tipo de morte decorrente do estado decadente em que viveria. Restando apenas dois de nós para contar a nossa história, sendo que um se converteria num desses fanáticos religiosos que proliferam feito baratas em todo canto, enquanto eu me escravizaria a uma família com dois ou três filhos ao lado de alguém mais decadente ainda, passando o resto de nossas vidas trabalhando numa pequena empresa, ou pulando de um estabelecimento a outro no comércio, implorando a deus e ao diabo para não sermos demitidos.

Quando Annibal proferiu tais palavras, no dia anterior ao episódio no Cemitério, em meio a mais uma bebedeira dos finais de semana, tínhamos acabado de comemorar o seu vigésimo aniversário. Pavarotti era apenas um ano mais novo que ele, enquanto eu e o meu primo, Erik, éramos os caçulas do quarteto, com nossos dezessete anos e alguns meses. Na celeuma sobre o nosso destino, ninguém desejava ser o infeliz condenado àquele mau agouro, equivalente à vida vegetativa que nossos pais tiveram. Ver meu primo sair ileso daquela noite convulsiva conferiu a Annibal e Pavarotti a certeza de que alguma tragédia abalaria contra a vida de Erik. E embora suspeitássemos, a questão mais pertinente não era saber qual dos dois colocaria um fim a si mesmo, mas de que modo a sociedade nos aniquilaria, como ela tem feito com seus filhos indesejáveis ao longo dos séculos.”


Trecho 02:

“À noite rolaria um show no Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima, em homenagem a Renato Russo, no dia 12 de outubro de 1996, vinte e quatro horas após os jornais anunciarem sua morte. Apesar da tradicional falta de apoio dos promotores de eventos da cidade e do poder público, que apenas cedeu o espaço, as bandas locais se reuniram como puderam e realizaram tudo na marra. Como bastava um quilo de alimento não perecível para entrar no recinto, não deu outra, o anfiteatro abarrotou-se de jovens e adultos, quase todos indumentados com suas camisetas pretas e calças jeans.

Ao adentrarmos no show, cumprimentamos umas quatro pessoas que mal conhecíamos e nos dirigimos para a parte superior da arquibancada. Não demorou muito para nos juntarmos a Pavarotti, que até então era apenas mais um conhecido dos eventos que rolavam na cidade.

Enquanto as bandas locais homenageavam o eterno líder de Legião Urbana — com suas batidas raivosas, acordes sujos e estridentes —, Annibal, Erik e Pavarotti dividiam bebidas e cigarros, do início ao fim do evento, se metendo nas rodas punks que se formavam e se desfaziam quando os ânimos saíam do controle, enquanto eu me virava como podia para apartá-los de alguma confusão. A cada música tocada, a cada trago compartilhado, consolidávamos mais e mais a formação do que chamamos de quarteto subversivo. Uma profusão de sentimentos tomou conta do recinto. Nas estrofes finais de “Metal contra as nuvens”, a atmosfera circundante na arena se suspendeu, como se o tempo se movesse lentamente, intensificando a tonalidade das cores até então ofuscadas pelo luto. A dor e a saudade escorrendo nas faces transfiguravam-se pouco a pouco em algo mais sublime, feito os raios de Sol rompendo as nuvens densas de uma tempestade. A cena remeteu-me à procissão fúnebre d’O vilarejo dos moinhos. Toda tristeza de outrora transformada em júbilo pelo princípio e fim de uma vida grandiosa.

Ao término do tributo, seguimos cambaleando pelas ruas do centro até o Cemitério da Saudade. Não me recordo de quem teve a ideia de transformar numa tradição o ato de atravessá-lo toda vez que fossemos à Zona Leste — percurso que contrariava a lógica dos atalhos, tornando o nosso itinerário para casa mais longo, embora fosse mais divertido. Antes de pularmos o muro, conferimos se alguém observava a nossa movimentação. As luzes internas das casas estavam todas apagadas. Apenas um vira-lata perambulava pela rua vasculhando as sacolas de lixo no meio do caminho. Invadimos o cemitério sem dificuldades. O cheiro de fezes, urina, velas, flores, terra mofada, entre outros odores indefinidos que proliferavam no local, nos nocautearam feito um jab.”


Trecho 03:

“As manhãs e as tardes de domingo eram os períodos mais tranquilos na Praça do Boneco. O paisagismo não chegava a ser tão belo quanto o de outras praças mais antigas, localizadas nas regiões nobres da cidade, mas era o suficiente para o local proporcionar um agradável passeio entre familiares e amigos. Casais de todas as idades, idosos, jovens e crianças aproveitavam a calmaria e o característico clima morno da região, que durava o ano inteiro; mesmo quando, do alto do firmamento, o astro-rei imperava com todo o seu esplendor na estação mais quente do ano, deificado por uns, indiferente para outros, e até mesmo odiado em casos extremos; ora trazendo o sorriso aos rostos daqueles que enfrentaram um rigoroso inverno, acalentando os corações enamorados; ora castigando o homem com a sede, a aridez do solo ardente, a poeira da terra esturricada, o lamento e a esperança — palavra por vezes horrorosa, como a cólera divina.

(...)

No mesmo domingo desse trágico incidente, por volta das sete horas da noite, Denis apareceu na praça perguntando por Annibal, e pediu que Erik desse um recado a ele, apontando um revólver calibre 32 para a sua cabeça.

— Diz praquele féladaputa que vou encher o rabo dele de bala! Tá me ouvindo?

Erik assentiu com a cabeça, dizendo em seguida que daria o recado — com um olhar sério, fixo em algum pensamento, e um tom seco na voz, como se algo definitivo tivesse germinado naquele instante. Erik sabia que a única reação possível naquela situação era manter a calma e deixar o pivete dizer o que queria, sem contrariá-lo.

Denis era um garoto de treze ou doze anos. Ninguém nunca soube precisar a sua idade, mas todos conheciam a má fama que ele tinha, antes mesmo dos dez anos. Pele clara, meio sardenta, olhos verdes, cabelos loiros e encaracolados, um pouco abaixo das orelhas. Não fosse aquele olhar expressivo, uma mistura de inocência perdida e ódio, poderia descrevê-lo numa forma angelical barroca e clichê. Mas de anjo o pivete não tinha nada. Denis rodou no camburão tantas vezes, e apanhou outras tantas nas mãos dos PMs e de quem o flagrava roubando, que já nem se importava. Aliás, quanto mais se ouvia falar das enrascadas em que se metia, maior se tornava o respeito e a admiração dos garotos de todas as idades, incluindo os veteranos no assunto, por assim dizer.”




Escritor, crítico literário e professor, Nélio Silzantov é natural de Vitória da Conquista, Bahia. Licenciado em Filosofia pela UESB, Mestre em Estudos de Literatura pelo PPGLit/UFSCar e doutorando em Educação pelo PPGE/UFSCar. Edita o blog Ágora Literária e o Foro Literário Sertão da Ressaca. É coautor do livro de não-ficção Ética, Estética e Representações Sociais (iVentura, 2021), organizador da coletânea A novíssima literatura do Sertão da Ressaca (Ressacada Edições, 2023); autor da coletânea de contos BR2466 ou a pátria que os pariu (Penalux, 2022, indicado ao 65º Prêmio Jabuti 2023), e dos romances Desumanizados (2020) e A finitude das coisas (Editora Patuá, 2023).