A ameaça do julgamento externo é um veneno para a criatividade | entrevista com Antonio Pokrywiecki

 por Taciana Oliveira__


                                                              
Em entrevista a revista Mirada, Antonio Pokrywiecki revela o processo criativo por trás de sua obra, aborda temas como o medo do futuro e o capitalismo tardio, e compartilha suas influências literárias. Natural de Joinville–SC, e atualmente residindo em São Paulo, o autor nos convida a mergulhar em narrativas fragmentadas que refletem a sua maneira a realidade contemporânea. Vamos descobrir mais sobre a trajetória e as reflexões que deram vida a "Dentes de Leite".

1 - Conte-nos um pouco sobre a feitura do seu novo livro, "Dentes de Leite". O que te inspirou a escrever essa obra?


Como é comum que aconteça, iniciei minha trajetória como escritor de ficção escrevendo contos. Isso foi há cerca de dez anos. Eu era muito novo, mas queria vê-los publicados, meus primeiros contos. Pensei, na época, em organizar uma obra com minhas primeiras histórias, um livro de contos que marcasse minha fase mais imatura. 


Daí surgiu o título“Dentes de leite”, que eu achava excelente para uma estreia. 


Acabei desistindo da ideia, e comecei a trabalhar em um romance, “Tua roupa em outros quartos”, publicado pela Editora Patuá em 2017. Nos anos que se seguiram, me dediquei a outros dois romances, que decidi descartar. Foi durante a escrita de um desses romances, quando vivia um terrível bloqueio criativo, escrevi o conto "Um grande buraco" em uma noite no início da pandemia, de forma completamente despretensiosa, simplesmente porque sentia falta de escrever. 


Um conto puxou outro e, quando percebi, um livro ganhava forma. Eu havia desistido completamente da escrita do romance, pois agora estava me divertindo - havia reencontrado a diversão da escrita nos contos. Cada conto neste livro é uma marca do meu reencontro com a alegria de escrever, o que, para mim, não é muito diferente da alegria de viver. 


O livro ganhava forma, mas ainda faltava um título. Eu tinha um conto em mente, algo que gostaria de escrever, sobre um menino que era brutalizado na escola. Idealizei algumas cenas excêntricas de bullying intercaladas com cenas de animais acasalando, lutando ou caçando. Comecei a escrever o conto com uma cena em que arrancam dois dentes do menino, e me veio o estalo: este conto se chamaria “Dentes de leite” - um nome que o guiaria para um caminho completamente distinto do que havia imaginado em um primeiro momento -, e este conto daria nome ao livro. 


Em resumo, escrevi o livro sem um projeto muito claro, sem um grande argumento por trás. Apenas após finalizá-lo, percebi que comecei escrevendo o conto "Um grande buraco", no qual um homem adulto perde um dente durante o sono; e terminei o livro escrevendo o conto "Dentes de leite", no qual um menino tem seus dentes arrancados. No fim das contas, quase cheguei perto de ter um conceito fechado, amarrando o livro, mas apenas por acaso. 



2 - O livro aborda temas como o medo do futuro, o capitalismo tardio e o neoliberalismo. Como esses temas são tratados nos contos?


"Dentes de leite" está longe de ser um livro "sobre" algo. Escrevi os contos conforme a necessidade se apresentava para mim. Costumo dizer que a escrita começa com uma coceira, ou uma dor de dente - e o trabalho talvez seja coçar, ou morder o dente inconveniente, até que coce ou doa ainda mais. Após a escrita do livro, entendi que esses temas estavam lá o tempo todo. Nas falas, nos medos, no comportamento dos personagens. E estavam lá porque estavam em mim, o tempo todo. É na minha pele que coça, é meu dente que dói. 


Faço parte de uma geração que cresceu diante da televisão, alternando filmes apocalípticos com o noticiário do fim do mundo, rodeada pela promessa de um futuro de desastres tidos como inescapáveis - o aquecimento global, o avanço da tecnologia, doenças mortais que se espalham no ar sem escolher suas vítimas, a velha ameaça de um conflito nuclear. Tudo isso está no nosso DNA. Faço parte de uma geração que, incapaz de pensar em futuro ou legado, se individualizou, fechando-se em si, entregue a um hedonismo deprimido, à fuga aos prazeres solitários, cada vez menos possíveis. Somos todos viciados. Ansiosos e frustrados, insaciáveis e inconsoláveis.


Para mim, é impossível falar desse medo do futuro e do fim do mundo, sem mencionar a ideologia do progresso, a máquina que impulsiona o planeta para o abismo e pressiona os indivíduos a otimizarem a si o tempo inteiro. 


O absurdo vem justamente dessa combinação: a pressão por desempenho e otimismo - fundações do modelo de trabalho neoliberal, de uma economia tomada por anglicismos, baseada na comodidade e na burocracia, que nada produz - em um planeta que sabemos que está se esgotando rapidamente. Porque as contas não param de chegar, e o trabalho assalariado e estável é cada vez mais escasso. 


De uma forma ou de outra, isso está presente em quase todos os contos do livro, muitas vezes como pano de fundo, sem que as próprias personagens tenham consciência concreta das raízes de seus tormentos. 



3 - A fragmentação das narrativas é uma característica marcante em "Dentes de Leite". De que forma essa escolha formal reflete a realidade contemporânea?


As pessoas têm cada vez menos paciência para consumir qualquer conteúdo mais longo ou denso. Não é um bom momento para uma literatura de difícil absorção. Até mesmo os vídeos de TikTok estão cada vez mais curtos e rápidos. É a “Michael Bayzação” da vida. 


Gosto de ler e de escrever narrativas fragmentadas, que vão ganhando sentido conforme se avança. No fim, a soma das partes gera a compreensão do todo. Isso funciona muito bem no cinema de Atom Egoyan e de Mariano Llinás, por exemplo. Fragmentar a narrativa me dá mais espaço para inovar e inserir cenas ou pensamentos que não caberiam em um texto corrido. 


Paradoxalmente, isso exige mais do leitor, que leva mais tempo para entrar no texto. Exige mais concentração e paciência, intencionalidade. Pode ser que essa seja uma maneira de recusar, não se deixar absorver por completo pela lógica do algoritmo. 



4 - Joca Reiners Terron, que escreveu a orelha do livro, elogiou seu trabalho dizendo que você sabe extrair do leitor suas prevenções e medos com extrema paciência. Como você vê essa relação entre autor e leitor?


Nunca escrevo pensando em que vai ler. Escrevo sempre pensando em encontrar formas de expressar o que estou sentindo que pode ser o conto, extrair o máximo potencial da história e das personagens. O leitor que tenho em mente, no momento da escrita, sou eu mesmo. Escrevo pensando se gostaria de ler aquilo que estou montando. A ameaça do julgamento externo é um veneno para a criatividade. 


Na edição, sim, penso em quem poderá ler, na experiência de leitura e absorção do texto. 



5 - "Dentes de Leite" surgiu após você decidir voltar a escrever contos para reencontrar a diversão na escrita. Como foi o processo criativo para desenvolver os contos de "Dentes de Leite"? Você poderia nos contar sobre as etapas e desafios que enfrentou durante a escrita do livro?


Meu processo criativo se baseia em fazer longas caminhadas pelo bairro e tentar escrever todos os dias. Sou bastante disciplinado nesse sentido, e acredito que a constância viabilize a criatividade. Caminhar é a parte mais importante, para mim. Quando estou bloqueado, geralmente é porque não andei o bastante. Boa parte dos contos surgiram de ideias que tive caminhando, e anotei imediatamente. 


Com "Nico e Kira" tive a ideia inicial do conto enquanto caminhava na praia, sem nada para anotar. Lembro que naquele dia interrompi a caminhada ali mesmo, e voltei apressado para casa, repetindo a ideia em voz alta para não esquecer. Esquecer uma ideia é a pior coisa que pode acontecer, é imperdoável. 


De modo geral, meus contos surgiram com algum estalo, uma coceira, uma dor de dente. Nunca começo a escrever com uma ideia clara de como vou finalizar. É o trabalho diário de escrita - e investigação - que orienta o caminho da história, permitindo que o texto se mova em direções não planejadas. 


E para isso, é necessário constância e paciência. A maior parte dos contos deste livro levaram meses para serem escritos. 



 6 - Você poderia destacar suas influências literárias, e de como elas impactaram sua escrita em "Dentes de Leite"?


O livro levou quatro anos para ser escrito, e foi influenciado, em forma e conteúdo, por um caldeirão de referências - não apenas literatura: filmes, publicidade, desenho animado, filosofia, livros técnicos e de negócios, psicologia e autoajuda foram fundamentais na construção dessas histórias. 


"Dentes de leite" é um livro de contos que propõe uma recusa ao compromisso com a verosimilhança, um convite a outras possibilidades literárias. Sou um entusiasta do Oulipo, especialmente influenciado por Georges Perec, do pós-modernismo norte-americano e do conto argentino - nossos vizinhos extraordinários têm, quem sabe, a melhor literatura do planeta, fundamentada em uma tradição de formas breves. 


Por fim, destacaria fortemente Roberto Bolaño, Lydia Davis, George Saunders e Donald Barthelme, influências que não foram passageiras. Houve momentos em que me vi bloqueado, e o que fazia era pegar algum livro desses autores e ler um conto ou trecho qualquer. Eu sempre saia com clareza do que devia fazer em seguida.




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Taciana Oliveira - Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector - A Descoberta do Mundo” Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.