Arcedino | crônica Raphael Cerqueira Silva

 por Raphael Cerqueira Silva__



Foto de Jr Korpa na Unsplash


No telejornal, mesmices que só me arrancam bocejos. No Instagram, os mesmos corpos e sorrisos desnudos num frenesi de jovialidade que me incomoda pra cacete. 

Tomo o resto do chá de hortelã, deixo o âncora anunciando outro bafafá na CPI não-sei-do-quê, puxo o zíper do blusão, vou à janela ver as modas.     

A cerração ainda envolve o Xopotó. “Cerração baixa, sol que racha”, sentenciava a Comadre Maria. Hoje, atravessando os desertos da meia-idade, percebo: embora lesse “malemá”, como dizia, a Comadre era a mais sábia de toda a vizinhança. Sentada na porta de casa, vivia mascando fumo-de-rolo e espalhando sua sapiência ao vento. Nós, moleques idiotas, debochávamos de sua boca quase sem dentes, do lenço que inutilmente tentava esconder a gaforinha, da pele curtida de sol e dos anos de lida no canavial... A gente se achava muita coisa porque frequentava a escola e lia revistinhas. 

“Bom dia.” 

Retribuo o cumprimento com um fraco aceno de mão. Arcedino atravessa a rua com o lixo. Ao contrário de alguns condôminos, nunca reclamei dele. Seu jeito e sua mania de falar do alheio, sinceramente, nunca me incomodaram.

Certa vez, a velhota do 707 me parou na saída do elevador. Veio com uma conversa de cerca-lourenço até que, finalmente, chegou onde queria: criticar os modos do zelador que, segundo ela, “são afrescalhados demais da conta”. Eu, que não conseguia despregar os olhos da mancha pavorosa em seu rosto, aleguei pressa pro trabalho. Ela insistiu. De saco cheio com aquela falação, fui curto e grosso: “Olha, dona, ele tá dando o que é dele, então, que seja feliz”. Deixei-a plantada, sem palavras e de olhos esbugalhados, no hall. E, tenho certeza, foi a partir daquela manhã que começou a circular o murmurinho: o sujeito do 203 é da laia do zelador. 

O fato é que, aqui nesse prédio dos infernos, tem gente demais tomando conta da vida alheia. Arcedino é um que não foge à regra. Ainda ontem, varrendo o corredor, comentava não sei com quem: 

“Não é querer falar mal, longe de mim apontar dedo, mas a madame mereceu a galhada. Mulherzinha antipática, se acha melhor que os outros porque tem um carguinho no fórum... Magina se eu quero trabalhar num serpentário que nem aquele, cruzes! O chifre foi é bem feito... E demorou pra acontecer, porque todo mundo sabe que o bofe dela é sem-vergonha.”  

Quem ouvia soltou uma gaitada seguida de uma tosse medonha. 

O elevador desceu estalando. Arcedino voltou a cantarolar num inglês só dele, e eu retomei minha crônica.  

Andaram reclamando dessa cantoria no grupo do condomínio. Mas, para mim, desde que cumpra com suas obrigações e faça o serviço direito – e, convenhamos, isso ele faz - “tanto se me dá”, como dizia a Comadre Maria. 

O que me irrita é quando desembesta a falar de política. Na época das eleições, ficou insuportável: todo dia pregação nos corredores, elogiando o Mito e seus asseclas. E, o mais apavorante, reunia uma audiência, tão empolgada quanto ele, que foi aumentando à medida que aproximava o segundo turno. Não me queixei ao síndico, muito menos no grupo do condomínio, pois evito futricas. Por isso mesmo não compareço às reuniões. Pago o que devo e, no mais, trato com indiferença quaisquer assuntos do prédio. Um dia, tenho fé, sairei deste hospício.  

Mas, como não sou de ferro e nem hipócrita, desde que Arcedino virou cabo-eleitoral do Inominável e passou a levantar bandeiras fascistas, nunca mais lhe dirigi a palavra. Desde então, minha rotina inclui, antes de sair, espiar pelo olho-mágico: se estiver zanzando com a vassoura, espero terminar a faxina. Se o ouço subir no elevador com sua cantoria, desço pela escada. O bozolóide, no entanto, parece não entender - deve ser lesado ou algo assim – e insiste em me cumprimentar, como fez ainda a pouco.

A cerração parece não querer dissipar. 

Arcedino varre a calçada, cantarolando The Winner Takes It All.  

Fecho a janela: melhor ver o noticiário e os instragrammers.  




Raphael Cerqueira Silva
é mineiro, graduado em Direito e História, servidor público, escritor. Publicou Confissões, livro de contos pela Porto de Lenha Editora, e A vida segue, livro de crônicas pela Editora Caravana. Suas crônicas também podem ser lidas no blog Reminiscências Literárias e nas revistas Vicejar (online) e Conhece-te (impressa).