CISNES SELVAGENS - Três filhas da China, de Jung Chang

 por Adriane Garcia__ 



Por estes dias, terminei a leitura de Cisnes Selvagens, de Jung Chang. Leitura que fiz de modo demorado, pois além do livro ser extenso, há momentos bastante fortes e impactantes que me fizeram pausar a leitura. A autora escreve uma autobiografia romanceada, contando a história de três gerações de mulheres que viveram na China: a história dela mesma, de sua mãe e de sua avó. Assim, por meio da história dessas mulheres, é possível entrar em contato com a história chinesa, desde a monarquia até os anos 70 do século XX. 


Jung Chung, nascida na China como Er-hong e cidadã britânica, registra tanto os costumes ancestrais quanto as mudanças avassaladoras que os chineses suportaram da monarquia e o caudilhismo à invasão japonesa, do nacionalismo do kuomintang ao comunismo de Mao Tsé-Tung e sua desastrosa e assassina Revolução Cultural. A memória de sua família, principalmente a história de seu pai, compõe Cisnes selvagens como um documento épico, que nos faz refletir sobre o quanto de horror o ser humano é capaz de criar e de suportar, o quanto de humanidade pode sobreviver, resistentemente, em meio a desumanização. 

Há um destaque para a situação das mulheres no livro de Jung Chang. Nota-se que, sendo tratadas como objetos, posse de homens e desvalorizadas, muitas mulheres chinesas vão se sentir contempladas pela mensagem de igualdade do Comunismo. Antes não havia qualquer promessa ou sequer ideia de igualdade para mulheres. A saga bem detalhada de sua avó, Yu Fang, criada como posse valiosa do pai para vendê-la como concubina a um homem poderoso, um militar de alta patente, mostra todo o sofrimento pelo qual ela passa. Yu Fang teve desde menina os pés quebrados e enfaixados, para que não ultrapassassem doze centímetros, encaixando-se no modelo perfeito de mulher. A prática mostra bem até que ponto os homens tinham o poder de vida e morte sobre as mulheres e o completo controle sobre seus corpos. Da história da avó, chega-se à mãe da autora, Bao Qin, uma mulher que viveu durante a ocupação japonesa na Manchúria e que se empenhou desde a adolescência para ajudar na vitória comunista. É em plena luta contra o kuomintang, em ações clandestinas pelos comunistas, que ela conhece seu futuro marido, o camarada Wang. Wang é um personagem grandioso, cansado da desigualdade e da corrupção, um homem leal ao Partido Comunista Chinês. É acompanhando o esforço que Wang faz, muitas vezes em detrimento da própria família, pela implantação do sonho comunista, que o leitor  poderá sentir, junto com ele, a dor da traição das ditaduras, a sua derrocada da sanidade para a loucura, que é também a derrocada das políticas de Mao.

A narradora é a filha, Jung Chang. Nascida já sob domínio comunista, sua história até a juventude coincide com o “Salto para a Frente” - que levou a China à grande fome - e o crescimento do culto da personalidade de Mao Tsé-Tung, até a totalidade, quando o ditador já é assimilado como um deus e seu pensamento como uma espécie de religião. Cada vez mais sedento de poder, Mao Tsé-Tung destrói as bases do próprio Partido e incita à criação da Guarda Vermelha. Movidos pelas pulsões violentas bem manipuladas pelo casal Mao - a sra. Mao era uma mulher que usava o poder para perseguições pessoais - os jovens, em massa, trabalham pela chamada Revolução Cultural, uma expressão de “novilíngua”, pois de cultural não tinha nada, destruindo arqueologia, teatro, música, dança, cinema, artes plásticas, fotografia, literatura, arquitetura e costumes ancestrais, como as casas de chás, por exemplo, consideradas burguesas. Não tendo nada para fazer - até o amor era considerado burguês - a não ser a “Revolução” a Guarda Vermelha dá prosseguimento amplo à perseguição de Mao contra os professores (alvo predileto de ditadores), intelectuais, artistas e quaisquer livres-pensadores que ainda restassem na China. O medo toma conta de todos, não há o mínimo de liberdade de expressão, mesmo os mais velhos não são mais respeitados, as chamadas “assembleias” passam a ser instrumentos públicos de humilhação e tortura. É chinês contra chinês. Jung Chang nos conta sua trajetória na Guarda Vermelha e de como ter acesso (clandestino) aos livros que ainda não foram queimados foi decisivo para que ela se salvasse do morticínio físico e existencial.

Jung Chang constrói uma obra de memória sobre o trauma, com detalhamento farto, um registro único e necessário de uma distopia aplicada, sobre uma fatia da história humana ora silenciada, ora romantizada. O livro também mostra que há sempre aqueles que, diante da barbárie, encontram coragem e uma maneira de conservar sua melhor humanidade.


***
CISNES SELVAGENS - Três filhas da China

Jung Chang

Trad. Marcos Santarrita

Autobiografia

Cia das Letras

1991



Jung Chang
nasceu em 1952, na China. É autora, entre outros, de Cisnes Selvagens, que recebeu o NCR Book Award, e A imperatriz de ferro, e coautora da biografia Mao: A história desconhecida, os três publicados pela Companhia das Letras. Seus livros já venderam mais de 15 milhões de cópias e foram traduzidos para mais de quarenta idiomas.



Adriane Garcia
poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)