Escalas, tempos e humanos… | Luís de Barreiros Tavares

 por Luís de Barreiros Tavares__

Frame de “Rendez vous au café” (Quartier Latin – 1962)


Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. 

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. 

Tupi, or not tupi that is the question.” 

Oswald de Andrade, abertura do “Manifesto Antropófago” (1928)


“De corpo silencioso

estás junto a mim na areia

superestrelada.”

“Schweigenden Leibes

liegst du im Sand neben mir,

Übersternte.”

Paul Celan, in “LEUCHTEN” [“CINTILAR”]

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Segunda-feira – 08/04/2024

Presentes

Não julgues que o teu presente ou que qualquer presente quando dito actual, enquanto vigente, é o presente mais presente de todos. O presente vigente não é mais presente que os presentes passados e os presentes futuros.

É certo que aqueles presentes são outros. Mas sem dúvida que se trata de momentos presentes, apesar de já idos, ou por vir. A eternidade está aí. E, por outro lado, esta constatação é condição de possibilidade para percebermos, percepcionarmos que todo o momento presente tem o seu lado ausente. Por isso, em parte, estamos e não estamos aqui. Por exemplo, é fascinante ver o belíssimo documentário ou reportagem de rua: “Rendez vous au café” (Quartier Latin – 1962).

https://www.ina.fr/ina-eclaire-actu/1962-les-terrasses-du-quartier-latin-lieux-de-vie-des-etudiants



Frame de “Rendez vous au café” (Quartier Latin – 1962)


E porque é uma reportagem, ela presencia e testemunha um momento presente – ou momentos presentes – que compartilhamos como um presente vivencial de há mais de 60 anos! A vida vivida na rua, nas esplanadas, nos cafés, dos jovens estudantes, da vida que decorre. Um presente que tem em comum, apesar da singularidade de cada um dos presentes de todos os tempos, a vida dos presentes enquanto momentos presentes vividos.

Esta reportagem de rua, realizada há décadas, tem uma componente de invisibilidade (já passou) face à visibilidade concreta da realidade enquanto esta é vivida no presente que decorre. Aquelas imagens, embora visíveis e testemunhos de acontecimentos já passados, são também in-visíveis na medida do seu não presente. Todavia, elas não só podem impressionar a realidade presente, como também enxertá-la constituindo o real.


Frame de “Rendez vous au café” (Quartier Latin – 1962)


Domingo – 21/04/2024

A linguagem confere, na sua nomeação e re-nomeação das coisas, a efectividade de um presente transversal ao tempo e aos tempos. 

Quarta-feira – 24/04/2024

Antropofagias várias – releia-se a epígrafe de Oswald de Andrade

Precisamos muito de viver com os mortos. Sim, celebrar uma data, erigir um monumento, fazer uma homenagem evocando, pela linguagem, alguém que já partiu (fulano tal já cá não está). Estes gestos provêm da necessidade que temos de manter alguma comunicação com alguém, ou algum evento já distante e ido. Não só desfrutar da consciência da vida que já passou – tal como a nossa, que passará – evocando e respeitando o que é estar ausente, mas também, uma atitude de deleite na consciência do que é estar vivo por contraste com o estar morto.

Respeitamos os mortos, as celebrações ancestrais atestam-no desde os tempos mais remotos. Mas também temos a tendência para uma atitude que remonta a qualquer coisa de imemorial. Uma certa antropofagia agora sublimada, digamos assim, a par de um regozijo um tanto velado: o de contrapormos o estar vivo e gozar a vida por contraste aos que já foram. 

Entre outras vertentes antropofágicas, é sabida a dimensão antropológica, mágica, etc., em muitas sociedades arcaicas, onde o consumo de partes do corpo humano – de pessoas importantes, em termos parentais, de estatuto e outros – permitia a transmissão de qualidades humanas daquele que partia. Enfim, uma comunicação com a morte, entre a morte e a vida, digamos assim. A comunicação e partilha com a morte foi mais tarde, ao longo dos tempos, traduzida em outras escalas, procedimentos, gestos culturais, modos de vida, com a voragem do capitalismo, agora selvagem, por arrasto. “Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.”, diz-nos Oswald de Andrade numa outra leitura desta questão. Tupi, or not tupi that is the question.” 

Por outro lado, as notícias febris sobre as guerras e os números de mortes a toda a hora contados e acrescentados atestam bem esse estranho lado humano que pode tomar múltiplas vias.  Veja-se o caso de Gaza. Ou catástrofes como a recente do Rio Grande do Sul, por exemplo. Catástrofes naturais ou não, pensemos na crise climática.

Evidentemente que é importante assinalar e lembrar estes números. Até por memória daqueles que partem nestas desgraças colectivas. O perigo é quando se cria, por via desta realidade paralela e exacerbada dos media, e na exaustão de informação quase imposta mas variável, um estado de espírito indiferente e insensível que, por via de consequência, pode alimentar esta espiral sem fim. A indiferença é fundamentalmente massiva: gente absorvida nos circuitos dos hipermercados e do consumismo, embarcados nos discursos da bola, em conversas sociais descabeladas, na consecutiva imersão digital pactuando com a grande máquina dos dados e controle, etc. Tudo isto em conivência cega com o grande capital, em tempo contínuo, como assinala Jonathan Crary em 24/7 e em Terra Queimada. Por exemplo, no primeiro livro: “[…] dado não existir hoje nenhum momento, lugar ou situação em que não podemos não fazer compras, consumir ou explorar os recursos em rede, há uma incursão imparável do não-tempo do 24/7 em toda e qualquer vertente da vida social ou pessoal.” E no segundo: “É espantoso que, num momento de perigo inédito quanto ao futuro do planeta, e à própria sobrevivência da vida humana e animal, tanta gente voluntariamente se isole nos áridos armários digitais concebidos por um punhado de corporações sociocidas.”

É certo que há manifestações por todo o mundo, mas podem ser mais umas nuvens passageiras como muitas outras na vertigem e na voragem da mediatização que tanto trata de trazer à tona como afundar no esquecimento.

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Segunda-feira – 29/04/2024

Post Scriptum

“Das figuras amadas fica o eco

da sua refulgência de figuras.

São quase mágoa de sítio

em que, havendo-se já apagado a lua,

brilhasse ainda o vácuo

duma presença para sempre nula.

E, contudo, o firmamento

se ilumina das máculas nocturnas

desses ecos amados entre lágrimas

na sua refulgência de figuras.”

(Fernando Echevarría, in Sobre os Mortos)

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Referências

ANDRADE, Oswald de (1928). Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha. Revista de Antropofagia 1(1). São Paulo.

https://www.redalyc.org/pdf/5521/552156376009.pdf

CELAN, Paul (1996). Sete Rosas mais Tarde. Ed. bilingue, Selecção, tradução e introdução de João Barrento e Y. K. Centeno. Lisboa: Cotovia.

CRARY, Jonathan (2018). 24/7 – O capitalismo tardio e os fins do sono. Tradução de Nuno Quintas. Lisboa: Antígona.

CRARY, Jonathan (2023). Terra Queimada – Da era digital ao mundo pós-capitalista. Tradução de Nuno Quintas. Lisboa: Antígona.

ECHEVARRÍA, Fernando (2006). Obra Inacabada. Prefácio de Maria João Reynaud. Porto: Afrontamento.

Artigo na revista Caliban: Presentes… diga “presente”…

https://revistacaliban.net/presentes-diga-presente-6cec49cfe32f





Luís de Barreiros Tavares nasceu em Lisboa em 1962 e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa (2007). Autor de alguns livros, entre outros: O Acto de Escrita de Fernando Pessoa; Em Roda Livre, com Eduardo Lourenço; Sulcos, com Jean-Luc Nancy; 5 de Orpheu (Almada – Amadeo – Pessoa – Santa Rita Pintor – Sá-Carneiro). Colaborador regular em várias revistas (“Nova Águia”, “Caliban”, “Triplov”). Iniciou há pouco tempo publicações na revista brasileira “Mirada”. Já publicou nas revistas “Pessoa Plural”, “A Ideia”, “Philosophy@Lisbon”, “Comunicação e Linguagens”, entre outras. Vice-director da revista “Nova Águia”. Membro do Conselho Consultivo do Movimento Internacional Lusófono (MIL). Editor das edições-vídeo “Passante”. Mantém com menos frequência a actividade de artista plástico. Já deu umas aulas. Responsável pelo espólio do poeta Manoel Tavares Rodrigues-Leal.