Passaporte | Crônica de Valdocir Trevisan

 por Valdocir Trevisan__


   

Foto de Jr Korpa na Unsplash


Um idoso entra numa sala com sua velha bengala. Está bem-vestido e aguarda sua vez para renovar seu passaporte.


A espera promete ser longa e ele inicia uma conversa com uma mulher ansiosa. Rica e excêntrica, ela reclama da demora enquanto ele a escuta com a maior calma do mundo, uma paciência que relaxa a dama de ouro.


 O tempo passa.


Uma hora depois, um empresário impaciente comenta com o velho que irá viajar para fechar um grande negócio, mas mesmo assim não é feliz e faria qualquer coisa para não estar ali. 


Os conselhos do experiente senhor nos lembram que sempre depois da tempestade vem a bonança.


Sempre.


E as mudanças surgem quando menos esperamos. 


Passam-se mais duas horas, e o idoso aguarda sorridente sua vez enquanto um jovem médico compartilha sua história. Ele não trabalha mais como pediatra, como era seu sonho. Agora é um médico geriatra "porque ganho mais dinheiro... muito mais..."

   

O idoso conversa por quase uma hora com o doutor, que no final desaba chorando, dizendo que está "perdido".


Com sua sabedoria, nosso personagem central revela os dramas que enfrentou em sua longa jornada e lembra que sempre há tempo enquanto há vida.


É irônico ele dizer isso para um médico.


Passam mais três horas e nosso idoso segue calmo...


Entra um homem alto, de dois metros de altura, cantor de rap, que encara o velho.


"O que foi, velhote?" pergunta, já sentindo tensão racial. Novamente, o idoso surpreende ao cantar um rap que afirma ter composto na juventude.


Conquista mais um amigo, que admite, surpreso, que jamais imaginaria formar uma dupla com um velho "branquelo".


Uma senhora se sente como a Rainha da Inglaterra ao contar sobre suas viagens.


O velho sorri.


O médico, que havia saído para "respirar", retorna depois de duas horas e sugere ao velho que seus conselhos podem fazer com que ele repense e volte a ser pediatra... quem sabe...


Um jovem raivoso chega atrasado, ansioso para ser atendido. Ele precisa viajar para ver um irmão que não vê há 20 anos, após este ter ficado viúvo. As experiências do idoso sensibilizam o jovem impetuoso.


O tempo passa, mas o idoso não reclama, embora se sinta indignado com a impaciência dos outros.


Apesar de tudo, ele conforta os seres de Deus e sabe que não somos perfeitos.


Sabe também que quando Deus criou o homem no sétimo dia, já estava cansado...


O tempo passa, todos partem e ele fica sozinho, um pouco melancólico.


Levanta-se e vai embora.


Caminha duas quadras e entra em uma pequena casa de papelão de três metros para dormir.


Era seu lar...




Valdocir Trevisan
 é gaúcho, gremista e jornalista. Autor do livro de crônicas Violências Culturais (Editora Memorabilia, 2022) Para acessar seu blog: clica aqui