A devoração da sutileza, de Juliana Berlim | Resenha

por Alexandra Vieira de Almeida__



No seu livro de estreia no campo da ficção literária, Juliana Berlim nos apresenta, em A devoração da sutileza (Patuá, 2023), microcontos, minicontos e contos, dominando esta técnica narrativa com maestria, sabendo dosar em cada texto o tempo necessário para a concretude de um arremate que nos encanta com seu impacto e originalidade. São trinta e quatro textos que dialogam com vários saberes, uma miniatura do universo do conhecimento, como uma biblioteca borgeana, em que Berlim perpassa desde as Artes (cinema, teatro, pintura, música etc.), como as Ciências (astronomia, biologia) e as áreas de Humanidades (filosofia, sociologia, entre outras). Na capa, plantas carnívoras, a devoração da escritora carioca pelo saber, em todas as suas instâncias. Berlim se alimenta da carnalidade do seu entorno, escreve sobre fatos corriqueiros, do dia a dia, do cotidiano, mas sem deixar de ter o prato principal, que é seu poder de reflexão sobre esses mesmos fatos, mergulhando na psicologia das personagens, numa dinâmica existencialista. Para isso, vai se valer, principalmente, ao longo dos textos, do ponto cego, que na área da pintura, indica aquele detalhe que não foi antes visto ou percebido, mas que pelo olhar atento daquele que observa, pode trazer questões importantes para serem discutidas.

Juliana dá um tom problemático para pensarmos sobre as questões da existência. Na orelha de Rosa Amanda Strausz, ela aponta a “literatura de detalhes” na obra por ora aqui estudada. No prefácio de Godofredo de Oliveira Neto, ele escreve: “A escritura do cotidiano é a linguagem da ideologia, ela é, pois, ilusão, não realmente conhecimento. A ficção deste A devoração da sutileza, aliás, belíssimo título, é a representação literária dessa ilusão.” No texto inicial, um preâmbulo aos seus contos, “Fonte”, ela faz um jogo estético com as fontes, ou seja, as epígrafes de Carlos Nejar (“Ninguém é Ulisses por acaso”) e Lygia Fagundes Telles (“sou uma escritora do Terceiro Mundo”), que, de forma opositiva, abordam o masculino e o feminino, para se discutir o poder dominante e patriarcal, levando a figura da mulher também como geradora de conflito desde a origem mítica na imagem de Helena (“guerra”, “sangue vital”), revelando a fonte originária da mulher, jogando linguisticamente com a palavra “fonte”, como a ambiguidade da citação/origem, em que ela escreve: “Nascida de animalização vegetal, rica de minérios de fonte sideral, alienígena de toda Terra”. E, no final, conclui, utilizando, como paráfrase, a escritora Lygia, como fonte, dando sua conotação particular, através da questão, a pergunta que nos cabe como figuras femininas que devem questionar toda forma de ideologia do poderio dos países imperialistas: - “Quem és, mulher?” – “Sou uma escritora de Terceiro Mundo”.

O conto “Outubro” é de um realismo que beira ao fantástico em que um personagem conversa com um balcão em um bar (seu ouvinte-leitor de sua solidão e incompreensão). Nesse texto, se tem a visão comum do homem com relação à mulher: “esta mulher é ela e tantas outras, tantas fêmeas parecidas, todas iguais”. O balcão tem sua serventia como um objeto intermediário, assim como o objeto-livro tem com relação ao ouvinte e leitor: “Tenho medo, por isso o café está frio, intragável de engolir. Fala comigo, balcão. Você me deve uma resposta”. Toda essa tentativa de comunicabilidade nos mostra uma intensa solidão do homem em seu meio urbano em que a incomunicabilidade é a chave para as reflexões existenciais do ser humano diante da barbárie de uma sociedade que se esboroa a todo momento. O balcão é um objeto sólido diante da fragilidade do narrador, pois como o título do livro de Marshall Berman, retomando uma frase do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Todo o livro de Juliana Berlim se apresenta como uma aventura por um ponto cego, em que os anônimos, as figuras marginalizadas, os que não suscitariam o interesse num primeiro momento, ganham sua dimensão de importância na sua ficção tão bem estruturada.

No miniconto “O deus e o gafanhoto”, uma fábula como os grandes fabulistas escreveram, Esopo e Fedro, temos a metáfora do poder opressor contra os pequenos que buscam a fuga e a luta pela sobrevivência a partir da personificação do gafanhoto que foge da pisada do seu agressor: “O deus-maior o criou animal ao pequeno gafanhoto, na esperança de esmagá-lo sob os pés, como sempre o propósito de toda a divindade quanto a seus inferiores”. Temos nesse texto a moral da história e sua filosofia, como na fabulação antiga, mas com um toque todo particular e especial de Juliana Berlim.

No conto “Espelho”, encontramos ecos de Machado de Assis, em “O segredo do bonzo”, em que um “nariz metafísico” substitui os desnarigados. No texto de Berlim, é um nariz físico que o personagem acha no chão, o colocando como máscara, um segundo nariz, um duplo, um outro, uma dupla personalidade, com dois narizes. Com essa máscara, ele “sentiria duas vezes a vida?”, pois as pessoas são “viciadas no velho jogo do autorreflexo”. Passeando pelas ruas do Rio, ele encontra a rejeição, os “risos”, a “indiferença”. E em momentos poéticos e líricos, Juliana mescla um realismo duro à beleza dos cantos e ritmos da poiesis, unindo os gêneros literários com encantamento: “Ele luzia por dentro e seu sorriso acendia uma lamparina por fora. A fraca iluminação não dava conta da luz daquele sorriso de Via Láctea”. Mais uma vez, se fala da solidão, como no conto “Outubro”, assim como em outros no decorrer da obra. Só os gatos o acolhem, principalmente um em especial, Pingo, o mais fiel. E de novo a conversa, desta vez não com um objeto como o balcão, mas com um animal: “Hoje eu sou novo, hoje eu sou deus”. Nesse conto, há momentos que nos fazem lembrar dos textos de Rubem Fonseca, como “Intestino grosso”, “O cobrador” e “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, devido à intensa crueza em “Espelho”, como nesse trecho: “Decidiu compartilhar a ambrosia do dia: nada mais justo que seu gato, depois da reaparição, comesse o nariz que ele parecia tão ávido por pegar. Tentou rasgá-lo, mas a cartilagem era dura e rugosa. Felizmente teve ideia melhor: aproximando-se do asfalto, largou o nariz próximo ao meio-fio. Dali a três minutos, um ônibus em direção a Jacarepaguá triturou a carne com volúpia. O festim ia começar”. No final do conto, encontramos outra referência intertextual. O mito aparece como no Diálogo dos mortos, de Luciano de Samósata, que descreve a passagem dos mortos com as moedas nos olhos, o óbolo, para se ter a entrada no reino de Hades.

Em “Passarinhos”, podemos perceber o hibridismo entre uma linguagem mais despojada com palavrão - “Os passarinhos cantam e a vida não parece uma merda” – com o lirismo poético em – “O que será que a natureza tanto quer cantar através dessas caixinhas de ressonância aladas?” Dessa forma, Berlim mescla o erudito e popular, o culto e o coloquial, num mesmo instante de prazer estético, como fez o nosso mestre Guimarães Rosa. Os passarinhos trazem o tempo da delicadeza para driblar o trabalho maçante e diário. As narrativas dessa escritora têm o peso da pedra bruta e a delicadeza da pluma do pássaro em seus pousos concretos e voos aéreos. O canto dos passarinhos é o intermediário entre a imanência e a transcendência.

Já no conto “O pega-moscas”, algo que é banal, um ponto de fuga, serve para a discussão do próprio fazer literário, em que o conto-teórico, o metatexto, contrasta a “ficção barata”, o “clichê folhetinesco” ao texto mais literário, que é o conto mesmo de Juliana Berlim, que utiliza imagens incendiárias, como metáfora para esse amor, que ainda é desconhecido, mas que é imaginado. A temática é a conexão entre dois seres na época do confinamento, a quarentena, na qual o narrador relata que quer encontrar a pessoa por quem sua pena treme em plena virtualidade. No conto “O pega-moscas”, vai se falar da universalidade, não algo inédito que vai se escrever, mas aquilo que todos almejam e que é comum a todos nós.

“Lua de sangue” é um conto em tom de crônica da realidade, criando uma história ficcional através de notícias inverídicas pelo WhatsApp, as ditas Fake News de que um refrigerante, que Berlim não cita o nome propositalmente, sugerindo, para nós leitores descobrirmos por conta própria pelas mídias oficiais na internet, seria produzido a partir de fetos abortados.  Juliana faz uma crítica corrosiva aos fanáticos que usam essas mensagens para alastrarem o medo e confusão nas mentes de muitas pessoas.

O microconto “Incomunicáveis” é uma síntese perfeita que une o silêncio e o vazio da incomunicabilidade do casal à comunicabilidade de quem lê, preenchendo os subentendidos do texto, como num filme de Ingmar Bergman, em que o sussurro diz aquilo que pode ser dito nos vãos dos corpos: “A incomunicabilidade e o negativo dos corpos: elementos que repousam sobre a cama. O casal ausente de si sobre os lençóis”.

Em “Indefensável”, o inferno familiar dostoievskiano, que no início não sabemos, que aqui se revela o jogo literário, o lúdico. Não sabemos de início, de quem o narrador está falando. Poderia ser um idoso qualquer, mas depois relata que é seu avô, que já fede como um moribundo. O final é inusitado e a violência apresentada não é gratuita, pois o avô do narrador “colocou minha mão na brasa na brasa da lareira por ter mexido em suas begônias”. Uma relação de ódio, em que todos os familiares dele só se interessavam pelo dinheiro. Utilizando de um humor macabro e oxidável, Berlim finaliza o conto com a frase do neto: “Seria um porco indefensável para sempre”.

No conto “Ponto de fuga”, um aluno adolescente numa escola pública, reflete sobre o racismo através da arte, um quadro de Pedro Américo, o “Grito do Ipiranga”, projetado num slide em sala de aula pela professora. Com imprevisibilidades e surpresas, Berlim nos leva ao centro da mente do garoto, que a partir de um ponto cego no quadro, observa um elemento ainda não percebido pelas lentes comuns de uma cegueira sem sentido. A partir do ponto cego, ironicamente, se vê o anônimo, o que é periférico, o entorno. O personagem no quadro, um escravo, que ele conclui que é o mesmo rosto de seu avô. E quando o menino pergunta à professora quem é esse homem, ela responde que é “ninguém”. Isso leva o rapaz, também com o nome Pedro, como o primeiro imperador do Brasil, a refletir sobre os “tantos Pedros, célebres ou anônimos”. Pedro fica com suas questões sem respostas prontas O ponto de fuga, na obra de Berlim, nos faz enxergar melhor sobre a engrenagem de nosso sistema social.

Para finalizarmos esse estudo sobre A devoração da sutileza, vamos nos reportar, respectivamente a um conto e um miniconto, “Risoto” e "Paralaxe”. No primeiro texto, temos uma personagem que ainda não sabemos nome, que estava fazendo o almoço, o risoto, e que, a partir do flashback, vai nos levar à época da escola pública onde ela estudava, no Segundo Grau (usando não a terminologia atual, mas daquela fase passada), contextualizando o tempo e o espaço. O preparo do almoço vai ser um leitmotiv para as lembranças da personagem, um conto memorialístico, que discute a frustração da moça que não sabia atuar nas peças de teatro dirigidas pelo professor de dramaturgia num colégio público. Berlim cita nomes importantes do teatro como Garcia Lorca, Brecht, Nelson Rodrigues, Ensemble. Vemos neste texto o dia a dia numa escola pública e sua estrutura. Como a adolescente não tinha veia artística, “a coxia ficava tensa”. O aluno Ernesto era o indesejável espectador e diz abertamente para Pâmela, a moça que narra já adulta, que ela é muito ruim no palco. Se ela não tinha serventia na arte teatral, tinha nas artes de Eros, pois este rapaz a chama para o muro. A sexualidade é explorada e o final é belo com a descoberta do prazer pela jovem. Massaud Moisés, no seu Dicionário de termos literários, explica o que significa o conto no século em que viveu, o XX: “No presente século, o conto desenvolve sutilezas que, acentuando-lhe a fisionomia estética, o aproximam de uma cena do cotidiano poeticamente surpreendida”.

 Já o último texto do livro, Juliana Berlim parte de um termo da área da astronomia para nos apresentar o deslocamento dos pontos de observação que não são os mesmos. Aqui, é o olhar do eu e o olhar do outro que são as metáforas da observação astronômica de um astro, a tal da “outridade” que era mencionada por Octavio Paz, que nos faz sermos nós mesmos (o nosso outro) e os outros, que são os mesmos e diferentes, o próprio e o alheio. Buscando a “comunhão perfeita”, essa paralaxe que se movimenta do eu para o outro é a dimensão mesma de um ponto cego para que “o outrem” seja “a devoração da sutileza do eu”. No Dicionário UNESP do Português contemporâneo, há dois sentidos para “paralaxe”: “1. Aparente deslocamento de um objeto com a mudança do ponto de observação, 2. Aparente deslocamento angular de um corpo celeste devido ao fato de a observação se fazer a partir da superfície e não do centro da Terra, ou a partir da Terra e não do Sol”.

Portanto, A devoração da sutileza é este observar o outro, o que está além de nossa caixa íntima para uma expansão a outras zonas, tirando-nos de um lugar próprio e nos levando a outras paragens, o ponto de fuga que revela o que está por trás das sutilezas, dos pequenos detalhes que se tornam grandiosos na mão firme de Juliana Berlim, que tece a história daqueles que, “aparentemente”, não teriam seu próprio enredo, mas que a contista carioca traz à tona para nossa reflexão, individual ou coletiva.



Juliana Berlim é professora de Português e Literaturas do Colégio Pedro II, onde coordena o clube de leitura de literatura fantástica Neuromancers (I Prêmio Paulo Freire, ALERJ, 2019). Mestra em Ciência da Literatura pela UFRJ. Autora com textos publicados no Brasil (Revistas Gueto, Germina, Mirada da Janela, Ruído Manifesto) e no exterior (Alemanha, Chile, Coreia do Sul, Espanha e Portugal). Projetos recentes: Brazilian Translation Club (2021) e Mapas do Confinamento (2021); poemas em Poetas negras brasileiras (Ferina/ Editora da Cultura, 2021); Versão brasileira: a voz da mulher (Teatro da mente, 2023); contos em Carolinas (Bazar do Tempo, 2021), I Antologia de Contos Ofícios Terrestres/Acontece nos Livros (2022), Quilombo do Lima (Editora Malê, 2023) e Quando não estávamos distraídos (Ed. Sinete, 2023); crônica em Perspectivas, ilusões e contentamentos (Ed. Sinete, 2023). Escritora da FLUP (Festa Literária das Periferias) desde 2016.  A devoração da sutileza (Editora Patuá, 2023) é seu mais recente trabalho..



Alexandra Vieira de Almeida
– Escritora e doutora em Literatura Comparada (UERJ)