La oscuridad de nós | Resenha para o álbum Cuarto Oscuro, de Abson Sany

 por Iaranda Barbosa__



       Otavio Paz afirma, na página inicial de O arco e a lira, que a poesia é “Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero”. Além disso, é também, entre inúmeras outras atividades, “expressão histórica de raças, nações e classes”. Ouvir a primeira canção de Quarto Escuro, de Abson Sany, é abrir-se à poesia, é comprar um bilhete e viajar à nossa infância, é regressar às tentativas de equilíbrio sobre o meio-fio, aos banhos de chuva, aos pés saltando poças de lama, aos gritos da mãe nos chamando pelo nome completo, aos joelhos quase sempre arranhados. À medida que avançamos nas faixas, pensando em sermos donos da rua, em superar a nostalgia cimentada em cada pedra, dobramos a esquina da melancolia, caminhamos em direção à nossa casa, a algum refúgio que nos permita inspirar, nos inspirar, respirar.

O cenário noturno se instala com a mudez de palavras despidas por desespero, sabores, angústias e melodias que nos afagam em um quarto escuro. Dialogamos com o silêncio fechado em nosso peito no trânsito de uma bossa nova distante do elitismo pedante e próxima dos ecos de Cartola e Almir Guineto.  O lamento na voz, a dor da perda – qual perda? – a certeza de que algo jamais voltará, a incerteza do perdão, o abismo sob os pés. O timbre de Abson Sany é um veludo que nos acaricia sem titubear. É convite irrecusável para prosseguir o ofício da escuta.

Simultaneamente, Quarto Escuro tem sabor de retomada, reinício, desafio individual. Tem aroma de desabafo, medos superados, linha de chegada. Tem textura de realização, de ar rarefeito rompendo pulmões, de sorriso após uma conquista. O protagonismo sonoro dos instrumentos musicais e dos arranjos dispostos em segundo plano ressaltam versos carregados de sentimentos, cantados por uma voz melismática que baila e rodopia em algumas músicas. Em outras, as notas se alternam entre o peito e a cabeça, mediadas pela indecisão entre o instinto e a racionalidade, falseteando em meio aos labirintos do sim e do não, por onde o eu lírico rasteja.

A dramaticidade se agudiza quando adentramos em Cuarto Oscuro. Tal qual um ator que se disfarça sob a pele do personagem para falar de si e, assim, ser possível entregar-se à emoção, a voz poética desata nós. A rua agora lhe pertence, com sabor agridoce, calçada de sonhos perdidos, vigiada por olhos de sentinela, ventilada por venenos em rostos estranhos.

O desatino parece desvanecer ao longo da harmonia criada pela sequência das canções. O ritmo forma ondas nas quais navega o bálsamo que nos acalanta. As baladas são curtas, diretas e marcantes, assemelhando-se à brevidade das relações intensas, que deixam digitais em cicatrizes fibrosas. Dores e rancores de si mesmo se expurgam na construção do tu poético, mas, sobretudo, no reconhecimento da mea culpa e das tragédias, nem tão trágicas assim, criadas por nós mesmos.

Entre boleros, flamencos e passos dobles, a poética de Abson Sany nos convida ao sensível, ao reconhecimento de nossa latinidade, da herança tão miscigenada que nos possibilita a aproximação entre tango e o samba, o cigano e o indígena, o europeu e o nordestino. Pois, conforme anunciado nas primeiras linhas desta resenha, a poesia expressa a história de raças, nações e classes. Erudito e popular roçam as línguas e constroem registros da oralidade e textos poéticos que atravessam fronteiras abstratas balizadas em tratados e delimitações insanas. As duas faixas de bônus track de Cuarto Oscuro legitimam o desatar dos laços e enlaçam as culturas. 

Onze canções compõem ambos os álbuns. 11. Dois números iguais que, separados ou juntos, somados, produzem sequências com resultados sempre iguais na aparência, mas diferentes no significado, em uma progressão desafiadora: 1+1 = 2; 11+11 = 22; 2+2 = 4; 22+22 = 44; 4+4 = 8; 44+44 = 88.

Ímpares que resultam em pares, solidões que se encontram, encadeamentos que mudam em determinados momentos, sentimentos exasperados pelo acúmulo de vivências, sofrimentos, perdas, descobrimentos, idas, vindas, caminhos, ganhos, sorte, contratempos, adversidades, escolhas. Tudo está entulhado em um Quarto Escuro, abarrotando gavetas, trancando portas e janelas que, no instante ideal, serão abertas para deixar a luz que iluminará el Cuarto Oscuro dentro de nós.





Abson Sany Valentim é cantor, compositor, letrista e professor, graduado em Letras (Português-Espanhol) pela UFPE. Lançou os álbuns de estúdio Qualquer Universo / Cualquier Universo (2010) e Quarto Escuro / Cuarto Oscuro (2024). Atualmente lançou seu álbum Universo Vivo — gravado em 2010, na então Livraria Cultura (Paço Alfândega, Recife), durante o show de estreia e lançamento do álbum Qualquer Universo —, está organizando o lançamento da versão "Deluxe", com algumas faixas bônus, de Quarto Escuro, que sairá em 04 de novembro de 2024, e se preparando para uma temporada de shows, prevista para o primeiro semestre de 2025, com repertório de seu álbum mais recente e algumas releituras do cancioneiro popular.





Iaranda Barbosa é professora, escritora e crítica literária, doutora em teoria da literatura pela UFPE. É autora dos livros Salomé (2020) e Palavras de Silêncio (2022). Organizou e foi curadora das coletâneas: Antologia das Mulheres Pretas (2021), Artemísias: vozes de libertação (2021) — traduzido para o espanhol —, As várias faces da Perna Cabeluda (2023) e Nativas, mestiças e transoceânicas: o poderio feminino em Abya Yala (2023). Atualmente é professora adjunta da Universidade Estadual da Paraíba e está com o livro Ponto de Luz em pré-venda.