Não é querer falar mal | Renata Meffe

 por Renata Meffe__


     

Foto de Tomasz Filipek na Unsplash


    Não é querer ser abelhuda, mas vivemos na zona rural e não acontece tanta coisa por aqui. Normal que qualquer movimentação diferente lá pras bandas da casa do seu Joca — praticamente nosso único vizinho — termine por captar a atenção. Outro dia, quando regava as plantas da varanda, vi um adolescente zanzando muito à vontade do outro lado da cerca. Devia ser um visitante que conhecia o ambiente, pois demonstrava familiaridade com o quintal. 


     Não é querer controlar a vida alheia, mas aproveitei que tinha que entrar em casa e coloquei os óculos. Com a miopia corrigida, descobri que o suposto garoto era, na realidade, o próprio Joca, 86 anos. Com corpinho de 15. 


     Não é querer insinuar que este senhor realmente pareça estar na puberdade, mas a figura esbelta e ágil do seu Joca, nem de longe — e olhando com óculos — sugere alguém que acumula mais de oito décadas de vida. Joquinha tem a postura esguia, ar jovial e é duro na queda. Inclusive de telhado. Escorregou há poucos anos de um, enquanto varria folhas acumuladas nas telhas. Uma vez despencado, levantou e seguiu andando, como se nada fosse. O homem também já se recuperou em tempo recorde de dois AVCs: deu nem três dias e já tava roçando de novo. Nem picadas de serpentes interferem em sua rotina: 

— Ergui o pé de uma cama velha de ferro que fica na dispensa e, quando soltei, não percebi que fincou na jararaca. Espetada, ela acabou reagindo. Meu filho depois apareceu, viu a mordida e me levou pra cidade.

— E por que não gritou pra a gente acudir o senhor?

— Não deu tempo. Foi terminar de ferver a água do café que tava passando, e ele logo chegou.


     Não é querer me estender nas peripécias do vizinho, mas Seu Joca descreve com bastante tranquilidade esta e outras ocasiões em que foi “ofendido por cobra¨. Em todas elas, dava nem três dias já tava até subindo em telhado de novo.


      Não é querer opinar sobre vida saudável (tenho nem lugar de fala pra isso), mas acho que o segredo da boa forma e resiliência de Joquinha tem relação com sua movimentação constante:

—Me mexo o dia inteiro. Aprendi com meu pai, que não aceitava ninguém sentado se o sol estivesse de pé.                                           


     Não é querer tirar conclusões precipitadas, mas deve ainda contribuir pra boa saúde de Joca o gosto que tem pela socialização. Mesmo morando isolado na roça, busca cultivar amizades e encontros. Tanto que construiu fama de ser um excelente pé de valsa: 

— Não perdia um baile. Andava mais de 20 km pra chegar lá no São Pedro, dançava a noite inteira e depois caminhava os outros 20 km da volta.


      Não é querer me gabar dos eventos de nossa região, mas ela é sede do já tradicional Jocapalooza. Graças ao espírito gregário do vizinho, todo mês de abril, caravanas de jovens (e não tão jovens) vindas de diferentes partes do país, reunem-se às margens do Rio Sucuriú (Joca in Rio. Eu vou!) . É a celebração do aniversário de um senhor cheio de boas histórias, mas econômico nas dores. 

— Tudo bem com a saúde?

— O único incômodo é o joelho. Fica um osso raspando no outro. Mas tá tudo bão.


     Não é querer opinar sobre articulações e patelas, mas parece que joelhos longevos estão fadados a sofrer de cartilagem gasta (a minha, desde antes dos 40, já vinha rateando. E olha que me sento mesmo com o sol a pino). Então, bem aventurados os que se aproximam dos 90 apenas com o joelho levemente bichado. 


     Não é querer exaltar a maledicência, mas desconfio que a receita de bem estar do meu vizinho inclui um ingrediente extra: a capacidade de desabafar, não acumulando mágoas dentro de si. Quando coincidimos na porteira, Seu Joca costuma desfiar longa e detalhada lista de queixas e picuinhas relativas a familiares, vizinhos e amigos. Porém, antes de desaprovar atitudes de cada membro do público do Jocapalooza, faz questão de deixar bem claro suas intenções:

— Não é querer falar mal, mas….




Renata Meffe - Jornalista, fotógrafa, documentarista, tradutora, professora & cronista. Sim, somente atividades altamente rentáveis. Escrevo ensaios que jamais estreiam.