Palavra nenhuma, de Lilian Sais | resenha de Adriane Garcia

 por Adriane Garcia__




A plaquete Palavra nenhuma, da poeta Lilian Sais começa, sem dúvida, pelo título, passa pelo projeto gráfico, o rasgo de onde se pode ver o passado, velharias dentro de uma mala antiga e alcança epígrafes de espanto e desolação. A poeta escolhe versos do poema Fundo do mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen e de Escolho, de Francisco Alvim. Do primeiro, temos o encanto, a beleza, mas um espanto do terrível inominável. Do segundo, temos uma voz desolada, esvaziada de sentido, tentando alcançá-lo por meio das palavras. 

Palavra nenhuma compõe-se de um poema longo em que a persona-lírica está enlutada e reflete sobre luto e identidade; consequentemente, sobre memória e tempo. A morte, esse objeto, pode ser o mesmo para todos, mas sua representação é única para o sujeito, dada pela constituição psíquica construída no decorrer da história de vida pessoal e singular. O tema é universal, mas Lilian Sais nos apresenta uma persona-lírica que sofre a perda de alguém específico, seu pai, Roberto, e partilha conosco a face comum do acontecimento morte, perda de um ente querido, sentimento que podemos alcançar com as representações de nossa própria subjetividade. 

É interessante que a poeta tenha escolhido falar da morte contando um nascimento, de “lilian com n/ “de navio””. Aqui podemos nos lembrar do poema de Mario Quintana,Minha morte nasceu”, no qual o poeta escreve “Minha morte nasceu quando eu nasci”. Na sequência do poema de Lilian Sais, estaremos diante não só da morte do pai e desse luto, mas da orfandade, do vazio que se torna o lugar que não pode ser preenchido ainda, pois o luto é justamente o trabalho de adequação a uma realidade em que o objeto amado não existe mais. A morte, apesar de ser uma experiência traumática partilhada por todos, de maneira geral é tratada como inesperada, absurda. Nosso ego reage fortemente ao desaparecimento, a possibilidade da morte é uma grande ferida narcísica que tentamos remediar com sonhados mundos do além ou com a imortalização das obras. Lilian Sais nesse Palavra nenhuma reflete sobre a constatação da finitude pessoal diante da finitude do outro.

No vazio deixado pelo desaparecimento de Roberto, a persona-lírica tenta por meio da escrita tornar o incompreensível compreensível. A palavra nenhuma precisa se transformar em alguma palavra. O luto necessita ser elaborado ou se torna melancolia, um estado agravado da depressão. É preciso transformar a experiência dolorosa, existencial, em experiência estética. Diante de algo pior que a mudez, o sujeito que não tem a palavra, só pode viver em desespero. Se o sujeito não consegue ligar a um símbolo suas sensações primitivas, elas vão se desencadear na ação destrutiva, incognoscível, desamparada. É então que percebemos que, em Palavra nenhuma, a poesia se faz amparo, realizando o ligamento simbólico, tornando dor em beleza, ainda que nossos códigos carregados de singularidades tornem incompleta a comunicação da realidade, retornando-nos, sempre, de alguma maneira, à palavra nenhuma. Mais uma vez chama atenção esse título. Diante da morte é comum expressarmos uma impossibilidade. Dizemos: “não há palavras para consolar”. 

Tratando o tema da morte nem como tabu, nem como espetacularização, a poeta mostra sua habilidade poética de construir belas e tocantes imagens, de escolher substantivos concretos que povoam nossa imaginação e dão força à sua poesia, de utilizar bem comparações e metáforas, figuras de linguagem que tornam o poema rico, flutuante, como o navio no seu mar. Noutras vezes o casco do navio sem mar, esse peso, essa figura desolada. Com versos curtos, cujos cortes dão um ritmo de secura a uma dor - por vezes torpor - sem rodeios, Lilian Sais escolhe com eficiência as palavras a destacar e faz uma poesia que “conversa” com quem lê; conta algo tão íntimo como nascer ou morrer, ficar órfão, sonhar, ter saudade, agarrar-se a uma palavra cujo significante vai muito além de navio e nos emociona.


“nunca fui a um enterro

que não fosse

o enterro 

da minha mãe


depois de enterrar 

a mãe todos

os que morrem também

são ela


pelo menos comigo foi assim

até eu

enterrar meu pai”

(excerto de Palavra nenhuma, p. 15)



*** 

Palavra nenhuma

Lilian Sais

Poesia

Círculo de Poemas

2024





Lilian Sais é escritora e preparadora de textos. Doutora em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo, também atua como produtora e roteirista de podcasts, entre eles o Como o poema, sobre a poesia brasileira contemporânea escrita por mulheres. Em poesia, publicou a plaquete Passo imóvel (Ed. Cozinha experimental, 2018) e os livros Acúmulo (Patuá, 2018) e Uma baleia nunca dorme profundamente (Hecatombe, 2021). Seu primeiro romance, O funeral da baleia, foi contemplado pelo ProAC 2020.







Adriane Garcia
poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé (Caos e Letras, 2023)