Poemas de Joaquim Cesário de Mello

 por  Joaquim Cesário de Mello__



Foto de Jr Korpa na Unsplash


CEMITÉRIO VIVO DAS COISAS MORTAS



Sou a soma daquilo que perdi

e trago em mim este amontoado de ausências

Em minha alma há mais silêncios

do que a calada mudez do universo

 

Ao nascer perdi o útero

mas ganhei o peito materno

Ao crescer perdi o peito

mas ganhei a autonomia dos meus passos

No afastar do colo da minha mãe

ganhei o mundo e um punhado de calos

 

Para cada ciclo vivido

vou levando minhas perdas

E para chegar lá...

perdi o que tinha

...no lado de cá

 

Não há ganhos sem perdas

E o que seria das minhas tantas perdas

não fosse esta porção de certos ganhos?

 

É perdendo que me recordo

e é me recordando que construo

os tijolos da minha história

 

Há perdas saudáveis

Há perdas dolorosas

Existem perdas esperadas

perdas necessárias

perdas repentinas

perdas precoces

perdas tardias

e perdas adiadas

A vida é toda feita de perdas

pois sem perdas não teria a vida

 

Perdi o útero

larguei o seio e o colo

Perdi a infância

e o rapaz me deixou

Sumiu a juventude

desapareceu o primeiro amor

Deixei o colégio

e o sonho de ser cantor

E lá se foram

meu cavalo de aço

minha calça boca sino

e meus longos cabelos encaracolados

Se não fossem alguns retratos

teria apenas as paredes esburacadas das lembranças

 

E já que sou toda a soma de tudo o que perdi

então minha memória é um cemitério vivo

assombrado pelos fantasmas das coisas mortas




O SEGUNDO QUE SE EXTRAVIOU DA HISTÓRIA



Um segundo me chegou um segundo atrasado

e já havia outro segundo em seu lugar


Sem saber o que fazer e para onde ir

meu segundo tardio tentou voltar pra trás

mas segundos não foram feitos para voltar

apenas e tão somente passar


Proscrito dos relógios 

o segundo órfão dos meus horários

vagou pelo tempo do esquecimento

à procura de uma outra vida 

que pudesse por um segundo lhe adotar 


Triste o destino dos segundos

que nenhuma memória deles vai lembrar

pois um segundo perdido muda o rumo das coisas

e eu poderia ter conhecido Maria

ao invés da minha esposa

ou ter ficado solteiro

não ter tido filhos

nem saber o que é ser avô

e agora estaria morando solitário

em um apartamento de 50 metros quadrados

criando cachorros e dois peixinhos no aquário


Pensando bem

devo a este segundo extraviado

todos os anos que tive desde então

daquele dia em ele perdeu a hora

do minuto em que por um segundo

minha vida inteira se transformou




APRENDIZ DO ERRO



Quem eu amo se culpa

quando falha ou erra

pois para ela o erro deve ser punido

como alguém que tira nota baixa

por não ter acertado toda prova de Matemática


Já eu, não

Pra mim errar é humano

por isso todo erro é bem-vindo

pois é no erro que aprendemos

e aprendendo avançamos com a nossa humanidade


O que seria do acerto 

se não houvesse o engano

o correto sem o incorreto

e o verdadeiro sem o falso?


Sou quem sou

porque errei

vacilei, bobeei

tropecei, mas segui em frente

A culpa, porém

prende-nos no passado

e não nos ensina nada


Sou um aprendiz do erro

graças a ele me formei

no marido que sou

no profissional que sou

no pai e avô que sou


Quem não quer falhar

nem sequer às vezes errar

é só nada fazer nada

todavia não fazer nada

é também errar


Alguém já disse

que a verdade é o acidente do erro

enquanto para Freud

é errando que se descobre a verdade


Assim

erro porque fui feito para errar

porém é errando que se aprende

exceto quem insiste em ser analfabeto

e continua no mesmo erro, sem se adiantar


Sou um aprendiz do erro

e diante disso estou

a acometer novos erros

novos desacertos

novos equívocos

e novas falhas

para cada vez mais melhorar


Sou um aprendiz do erro

e é nele que vou me aventurar



Joaquim Cesário de Mello — Psicólogo, psicoterapeuta e professor universitário. Escritor e poeta, participou de várias antologias literárias, entre elas Nouveaux Brésils Fin de Sciècle (Universidade de Toulouse, França, 2000), Poesia Viva do Recife (CEPE, 1996), Cronistas de Pernambuco (Carpe Diem, 2010), Poesia na Escola (Palavra & Arte, 2021). Em final da década de 80 participou do Movimento de Escritores Independentes e foi cronista do Encarte Cultural do Jornal do Commercio (PE) entre 1998-2002. Autor dos livros Dialética Terapeuta (Litoral, 2003), A Alma Humana (Labrador, 2018), A Psicologia nos Ditados Populares (Labrador, 2020), A Vida Como Um Espanto (Labrador, 2022) e No Cemitério das Nuvens (Folheando, 2022)