por Raphael Cerqueira Silva__
Foto de Jr Korpa na Unsplash |
À sombra, espero o carro. Segundo o aplicativo, faltam 6 minutos.
Afasto os olhos para o prédio do outro lado da avenida. Mais uma livraria fechada. E, sem nada melhor pra fazer, busco na memória a última vez que entrei ali: tarde modorrenta, pedi o novo livro do Prata. “Tem, não”, a atendente respondeu. Procurei poesias do Mia Couto, também não tinha. Acabei levando, pra não sair de mãos abanando, um best-seller em promoção.
Súbito, uma motocicleta enorme, dessas lindezas que só se vê nos filmes, atropela minhas reminiscências. Vai imponente, clássica, pela avenida, atraindo outros olhares além do meu.
O taxista suspende a limpeza do capô, comenta com o vendedor de coco:
“É uma Electra Gilde. O Elvis tinha uma dessas, eu lembro bem.”
Em silêncio, o vendedor de coco continua contando os centavos espalhados sobre a caixa de isopor.
Me pergunto se o motorista se referiu a Elvis, o Presley, ou a algum companheiro de estrada. Mas não deve ser o cantor porque esse cara não é tão velho assim, penso, estudando seu rosto em busca de vestígios de que seja contemporâneo ao Rei.
A motocicleta desaparece de nossas vistas. O taxista assovia Love me Tender enquanto, lenta e delicadamente, a flanela desliza no para-brisa.
É, agora não resta a menor dúvida, concluo.
“Está livre, moço” pergunta a senhorinha que vem capengando com sacolas do Bretas.
Um “sim” solícito, quase urgente, interrompe a melodia. Eles entram no carro. Volto a olhar o celular.
Cinco minutos. Puxa, esse carro tá longe pra dedéu, resmungo. E de repente me dou conta: também estou ficando velho. Afinal, quem fala ‘pra dedéu’ nos dias de hoje?
Perdido em conjecturas, mal percebo que alguém toca meu ombro. Viro. É Henri, um companheiro de burocracia, que conheci num dos muitos encontros promovidos pelo sindicato. Regata, short, tênis, quer saber o que faço parado ali. Espero o Uber, respondo, mostrando o celular.
“Tivesse comentado que vinha esse final de semana, a gente podia ter combinado de sair.”
Digo que decidi de última hora e tal. Ele entende a desculpa.
“Beleza, mas na próxima avisa pra gente marcar qualquer coisa”. E sacando o celular do bolso: “Ó só, quando a gente pensa que já viu de tudo...”
Por um instante, acho que vai me mostrar fotos da orelha ensanguentada do Trump. Desde ontem, hóspedes e funcionários do hotel, esquecidos dos outros males do mundo, só falam nisso, inventando teorias para explicar e/ou justificar o atentado.
Ajeito os óculos, aproximo o rosto da tela. Na foto mal angulada, uma capivara. Em torno de seu pescoço — se é que capivaras têm pescoço, me perdoem os entendidos — um negócio escuro. Devo ter franzido o cenho, pois Henri explica:
“É uma câmara de ar. De longe, parece pneu né. Mas quando aproximei da ponte, deu pra ver que é uma câmara de ar... O povo joga tanto lixo no Paraibuna, e quem paga o pato são os bichos. Agora imagina o sofrimento dela com esse trem enfiado aí!”
Sem esperar meu comentário, desliza para um vídeo. “É curtinho”, diz, notando que procuro meu celular com os olhos. “Gravei agora a pouco. Meu programa de domingo é correr a Avenida Brasil inteira. E hoje deparo com essa cena lamentável... ó só a dificuldade da bichinha pra nadar.”
Pensei que você ia falar daquela confusão no comício do Trump, brinco. Henri guarda o celular, olha pensativo o arvoredo:
“Me preocupa mais essa capivara que aquele povo patético lá da América.”
A placa final 8W47 brilha ao sol, a mensagem do motorista pipoca na minha tela: Cheguei!
Pego a mala, me despeço. Na próxima vou correr com você por aí. Ele sorri, sabe que falei por falar.
Entro no carro. Henri envereda, passos atléticos, pelas sombras do Parque Halfeld.
Raphael Cerqueira Silva é mineiro, graduado em Direito e História, servidor público, escritor. Publicou Confissões (contos), pela Porto de Lenha Editora, e A vida segue (crônicas), pela Editora Caravana. Suas crônicas também podem ser lidas no blog Reminiscências Literárias e nas revistas Vicejar e Conhece-te.