Romance de Marina Monteiro discute a complexidade da violência doméstica

por Taciana Oliveira__



Fotografia: Manu d'Eça

Nesta edição Marina Monteiro conta detalhes sobre o seu romance de estreia “Açougueira” (editora Claraboia, 148 pág.) , que aborda temas complexos como violência doméstica e justiça social. Desde os primeiros passos no teatro até a concepção de sua obra literária, Marina revela as inspirações, motivações e desafios que moldaram sua trajetória como artista. Ela nos fala sobre a evolução de sua carreira, suas expectativas para o lançamento do livro e como suas experiências influenciaram a construção dos personagens e do enredo. Ela nos convida a adentrar no universo de "Açougueira" e a refletir sobre as questões humanas e sociais presentes em sua obra.

Leia mais na entrevista abaixo:


1 - Conte-nos sobre a sua transição do teatro para a literatura. Como surgiu  a ideia para   "Açougueira"?


Eu já escrevo literatura há muito tempo. Acho até que a literatura veio antes como expressão artística, se é que se pode pensar em uma linearidade do tempo. Mas digamos que profissionalmente teatro e literatura sempre andaram lado a lado. Eu escrevia muito em blogs lá pelos anos 2000, quando comecei a fazer a faculdade de teatro. Eu já tinha interesse em escrever desde muito antes. Então quando comecei no teatro eu já tinha essa atividade da escrita presente na vida e alimentava esses blogs. Na faculdade de teatro eu tive um encontro com uma professora que foi muito importante para a minha trajetória, a Eliane Lisboa, com ela aprendi a possibilidade de profissionalizar a escrita, aprendi procedimentos de criação e organização do ofício. Então comecei a olhar mais pra isso que eu já vinha fazendo, organizar essa atividade e colocar uma intenção nela. Nos blogs eu experimentava de um tudo, poesia, conto, pequenos ensaios, crônicas. Tudo ainda muito tateando. Comecei também a escrever dramaturgia e montar minhas peças já na faculdade. Em 2010, eu já estava no Rio de Janeiro e fui alertada por um colega do teatro sobre o selo novo da editora que ele já havia publicado, a Multifoco, o selo chamava download. Eu tinha um blog nessa época chamado Comendo Borboletas Azuis, ele achou que poderia se encaixar. Enviei o blog para a editora, e foi selecionado para publicação, então compilei 45 posts e publiquei esse primeiro livro em 2010, homônimo ao blog, que trazia um gênero híbrido, um pouco de prosa curta, um pouco de tentativa de poesia, uma linguagem bem da internet. O teatro e a literatura sempre estiveram de mãos dadas na minha vida, até antes mesmo de me profissionalizar. 


Açougueira tem semente em uma dramaturgia chamada Carne de Segunda que finalizei no princípio de 2020, antes da pandemia eclodir. Com a pandemia veio todo aquele processo de adoecimento mental que a gente foi vivendo, a situação política do país, a calamidade pública e o lidar com as questões coletivas e pessoais, tudo foi me levando para um lugar muito difícil de atravessar. Então aproveitei para fazer uma oficina de escrita que o Robertson Frizero estava oferecendo no instagram gratuitamente, como forma de contribuir para a saúde mental das pessoas, de passar esse tempo em conjunto, criando algo, acreditando na vida. Comecei a fazer essa oficina e seria mais interessante para aproveitar os ensinamentos se eu tivesse alguma ideia para trabalhar. A personagem da dramaturgia não saía da minha cabeça, e eu pensei, por que não brincar de adaptar a dramaturgia para um romance? Mas tudo num sentido muito de brincadeira, de passar o tempo, de esvaziar a cabeça naquele momento difícil, até porque eu estava focada noutro projeto de livro, que publiquei em 2021, e não tinha ideia de começar nada novo a sério. Lembro que comprei dois caderninhos e fui escrevendo à mão, para fugir das telas. A oficina acabou e eu continuei me dedicando ao projeto. Com o tempo foi ficando sério, foi saindo só da brincadeira e do passatempo, foi tomando meu tempo. E eu fui entendendo que tinha um processo nas mãos e fui aprofundando esse processo, passando por todas as etapas dele, das crises, das travas, da busca pela linguagem, pela forma, as leituras críticas, até entender que havia um livro. Fui entendendo também que era uma outra obra, não era mais uma adaptação da dramaturgia, embora o enredo básico fosse o mesmo, a personagem apresentava outras nuances, outras relações, apontava para outros caminhos. Açougueira surge com essa semente, com esse pé no teatro.


2 - O livro aborda temas complexos como violência doméstica e justiça social. Quais foram suas principais inspirações e motivações para explorar esses temas?


Esse tema surge já na feitura da dramaturgia que dá origem ao romance, de uma maneira muito espontânea. Não foi algo que eu estava buscando escrever. Foi resultado de um exercício do coletivo de atrizes-autoras que eu integrava na época, no Rio de Janeiro. Fazíamos exercícios, nos provocávamos, criávamos estímulos para as nossas escritas e gerávamos material para atuarmos. Um dos últimos exercícios foi a provocação de escrever um solo para a outra atuar, a partir do sorteio de situações dramáticas. Sorteei um papel onde estava escrito júri. Uns dias depois joguei no google a palavra júri e a palavra mulher, porque eu teria que escrever um solo para uma mulher atuar. Eu queria entender o que de justiça combinado com mulher viria em evidência na internet. Me saltaram muitos casos de violência, de questões de abuso e de feminicídio. Me acendeu um alerta. Então, quer dizer que quando a gente alia justiça e mulher numa busca na internet, a gente vê a mulher sempre nesse lugar de vítima de violência, de ser violentada, de ser abusada, de ser morta por ser mulher? Lembro de uma matéria, especificamente, que trazia uma mulher habitante de uma cidade do interior do Brasil que era considerada a principal suspeita de matar o marido. O marido dela apareceu morto e a cidade inteira tinha por certo que essa mulher era a assassina. Me chamou a atenção em determinado momento da matéria que fica claro que esses moradores da cidade viam frequentemente o marido correr atrás da mulher com um machado na mão. Tratava-se de um cara violento que agredia essa mulher, mas esses vizinhos nada faziam diante dos abusos desse homem, muito embasados naquela máxima terrível “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. No entanto, quando o marido aparece morto, toda a cidade cai em cima da mulher, tendo por certo que ela é culpada. Eles não foram capazes de defendê-la, mas foram capazes de acusá-la. Se ela tivesse morrido, talvez eles não tivessem feito nada. Mas como foi o marido, como foi o corpo do homem a ser violado, então a cidade inteira vem à tona para fazer justiça contra essa mulher, embora ela seja vítima, embora ela fosse vítima o tempo inteiro. Me parece que é sempre mais fácil culpar uma mulher do que responsabilizar um homem. Além disso eu estava nos semestres finais de filosofia na UFRJ e cursava uma matéria que abordava o conceito de justiça na República de Platão a partir da leitura da obra Antígona, e embora o conflito de Antígona seja outro, ainda assim tem ali um discurso sobre justiça, trazendo uma mulher subvertendo a voz do estado que é representado por um homem, e isso muito me interessa. Então estes foram motivadores para o processo de Açougueira.


Mas sempre gosto de lembrar que Açougueira é uma obra de ficção, e quando a gente fala de ficção, de literatura, a gente tem um poder de subversão da realidade nas mãos, de reinvenção da realidade, de brincar com os lugares de poder, com todas essas normativas que a realidade nos impõe, de se libertar da realidade. Eu busco muito esse lugar, por isso também coloquei a mulher como uma Açougueira, já colocando ela num lugar muito específico. Primeiro porque é uma profissão pouco comum de se ver mulheres exercendo, segundo que é uma profissão que traz um punhado de imagens e referências que brincam com nossos sentidos, e no caso do que ocorre no romance, onde um corpo é encontrado aos pedaços, a personagem já é colocada num lugar central de movimento desse conflito. Trabalhar essa figura dessa mulher, que já é desde sempre diferente do local onde ela está e ainda assume uma profissão incomum para mulheres, uma profissão considerada masculina, uma profissão considerada violenta, uma profissão que tem uma série de atributos não muito bem-vindos a uma mulher, colocar essa mulher naquele lugar que ela habita e fazer essa mulher subverter o que é dito sobre ela, subverter a própria história, a própria narrativa, a própria linguagem, as estruturas, me abriu a possibilidade de provocar movimentos de deslocamento no romance. Açougueira aborda também o tema da violência doméstica, além de outros temas, mas num lugar muito da ficção, num lugar também de suspender os juízos morais. Num lugar de julgar a própria justiça também, de julgar a própria estrutura social, num lugar muito ficcional, num lugar que só a linguagem literária pode levar a gente, não nenhum discurso, não nenhuma teoria. A literatura nos dá essa liberdade de brincar com a realidade, mesmo em questões mais densas, é possível deslocar, brincar. Isso que me interessa e me interessa na literatura, uma experiência estética, de linguagem, que não se finda numa temática ou num debate social sobre a realidade. Tentei buscar em Açougueira um universo ficcional, uma experiência estética capaz de subverter a própria linguagem, de subverter as normas, de subverter a própria realidade e deslocar essa mulher do lugar da pura vítima a colocando num lugar de quem cria o seu próprio destino, com uma faca em punho, rasgando as estruturas. Uma mulher que permanece viva.


3 - A narrativa de "Açougueira" é construída por depoimentos. Por que você escolheu essa estrutura e como ela contribui para a história?


Como é uma situação em que um julgamento está em iminência, eu queria que o acesso aos depoimentos acontecesse de forma direta, em primeira pessoa. Não só no caso da narradora principal, mas também dos vizinhos, que representam a cidade. Porque eu queria que a pessoa leitora se implicasse na leitura, nesse sentido de ser um pouco essa pessoa que escuta esses depoimentos, de estar no lugar de quem vai julgar alguém depois de toda uma polifonia que pode ser enlouquecedora. Eu queria que, colocando esses depoimentos em primeira pessoa, não houvesse um distanciamento do que está sendo dito. As personagens estão ali dizendo aquilo a partir das suas subjetividades, a partir das suas contradições. Elas podem estar mentindo, podem estar dizendo a verdade, exagerando alguns pontos, ocultando outros, tudo é propositalmente ambíguo. A própria Açougueira tem um objetivo muito claro ao construir sua narrativa, o de se defender, porque ela está sendo acusada de um crime. Ela vai construir o discurso dela a partir dessa tentativa de defesa. Então, não necessariamente tudo o que ela diz é o que de fato aconteceu ou como aconteceu, e ela mesma se utiliza dessa torção. Muito do que ela diz é permeado pela subjetividade dela, pelas afetações, pelas emoções dela, pela relação dela com os envolvidos, e ela vai se revelando no que vaza desses momentos, ela não controla todo o discurso. E tem esse lugar de escuta e de julgamento, que é quase um narrador oculto, que faz perguntas não descritas no texto, mas algumas podem ser presumidas pelas respostas, esse lugar é um não lugar que só ganha sentido quando a pessoa leitora assume seu papel na leitura. Gosto da ideia de entregar para a pessoa leitora um espaço de implicação na leitura, de uma leitura onde a pessoa que lê ocupa um papel. Então, optei por essa estrutura para criar essa leitura que abre brecha para quem lê se implicar na leitura e tirar suas próprias conclusões ou permanecer repleto de questões.


4 - Uma das cenas mais emblemáticas do livro é quando a personagem principal abate um boi. Qual é o simbolismo dessa cena para a narrativa?


Considero essa cena do abate do boi um ponto de virada para a personagem, quando ela entende um pouco da jornada dela e da busca pelo desejo de ser. Quando ela se transforma para ela mesma, e para o entorno. Ela já era considerada um ser estranho, mas quando ela abate o boi, ela é considerada um ser quase execrável para aquela sociedade que ela habita. E ao mesmo tempo, quando ela conta essa narrativa do abatimento do boi, é quando ela também se coloca ainda mais no lugar da mulher que ela é, sem temer o comprometimento com a própria imagem diante dessa figura que está escutando esse depoimento dela, porque ela está no lugar de suspeita de um crime e ela assume que ela matou um boi, ela assume que ela abateu um boi sozinha, e assumir esse lugar é dar subsídios para que ela possa ser considerada culpada da morte do marido, porque ela seria capaz de ter matado o marido, tecnicamente falando, já que ela foi capaz de matar um boi. Então, é esse momento no qual ela se implica, ela está se defendendo, ela está contando a narrativa dela, mas sem medo de se colocar no lugar da mulher que ela é, que é capaz de abater um boi, capaz de abrir caminhos para o próprio desejo de ser e ocupar seu lugar no mundo. Acho que essa cena vai gerando um sentido duplo, porque a personagem muitas vezes também se remete ao próprio marido como um boi. Então, que boi que ela mata ali naquela cena? Tem essa camada também. Porque é ali que ela mata simbolicamente o marido, a si própria, as repetições estruturais as quais ela se submeteu, ela começa a matar ali toda uma estrutura social que a conduzia para aquele lugar de repetição do que foi a mãe, do que foi a avó, do que foi a bisavó. Então, essa cena acho que é uma cena que une metáforas do livro e aprofunda e entrelaça essas metáforas de maneira que se torna um núcleo, um ponto nevrálgico da narrativa. Acho que é onde o trabalho que eu busquei neste livro, de perseguir uma ambiguidade, mais se aflora. A partir desse momento vai ficando cada vez mais difícil colocar cada coisa no seu lugar, porque existem muitas contradições na existência dessa mulher e de todas aquelas pessoas que estão ali envolvidas. Então, eu acho que tem esse simbolismo dessa mulher que se implica na própria imagem, em quem ela é, no próprio ser que ela representa sem medo de que aquilo possa acabar com a vida dela. Ela não desiste de ser quem ela é, mesmo que isso possa implicar em qualquer tipo de culpa para ela no final desse processo. E de alguma forma ela manipula essa imagem, essa lenda de si mesma que a cidade toda comenta, de quem matou um boi na unha, ela usa isso também nessa construção de si mesma diante daquela figura da lei que escrutina. Ao invés de fugir da imagem que constroem dela, ela mergulha na imagem, propositalmente talvez, para tirar as coisas do lugar. Ela não é uma personagem ingênua que apenas conta sua narrativa de vida, ela está construindo um discurso também.


5 -  O lançamento de "Açougueira" está agendado para Florianópolis. Quais são suas expectativas para esse evento?


Estou com expectativas de encontrar muita gente querida, de encontrar novas pessoas também. O lançamento vai ser num espaço muito legal da cidade de Florianópolis, que é a Latinas Livraria, uma livraria de rua com uma curadoria impecável, que traz o melhor da literatura contemporânea para a rua da cidade, num lugar de resistência cultural e política. Estou bem feliz, bem realizada e bem animada de poder encontrar as pessoas leitoras na Latinas, que acho ter tudo a ver com o livro. Esse momento de encontrar as pessoas leitoras é sempre muito especial, concretiza o trabalho.


6 – Como você vê seu crescimento como escritora e artista com o lançamento de "Açougueira"?


Sinto que sei mais o que eu quero na literatura hoje, e Açougueira é um ponto divisor de águas nisso, porque nesse processo eu meti mais o pé na porta nos meus quereres. Eu gosto de experimentar, gosto do risco, gosto de brincar com a linguagem e a forma, e nos livros anteriores eu fui mais tímida nisso, sentindo o terreno, com alguns receios rondando. Em Açougueira, não sei se pelo processo ter se dado boa parte na pandemia, eu não tinha muito a perder, ou me livrei dessas ilusões de perder e ganhar, sei que me permiti ir mais fundo no que acredito como trabalho literário. Que é um caminho de risco a partir da linguagem, de se provocar abismos, de experimentação. A experiência de escrita e publicação dos livros anteriores me amadureceu como autora, como artista, isso não pode deixar de ser dito, porque a gente vai se experimentando como autora e esse caminho não termina, vai se acumulando. Eu também nunca deixo de estudar técnica, nunca deixo de ler livros que me desafiem como leitora, de estudar esses livros, então tudo isso vai somando na bagagem e a gente vai ganhando uns espaços dentro da própria escrita. Mas cada projeto é um novo mundo e nos impõe novos desafios. O jogo nunca está ganho, ainda bem, sobretudo quando a gente gosta de experimentar e de se arriscar, sobretudo quando a gente quer brincar com a linguagem e com a forma, aí mesmo que a cada projeto é um jogo todo novo que se abre, não há domínio. Com a experiência e o repertório técnico a gente vai se conhecendo melhor, entendendo mais nossos processos e fluindo por algumas etapas com mais tranquilidade, vai ganhando ferramentas, mas todo novo projeto sempre vai trazer aqueles pontos que exigem da gente novas manobras da palavra, novos modos de se colocar na página. Cada projeto apresenta seus abismos e na maioria a gente nem tem muito como decidir se pula ou não, a gente vai caindo mesmo, sem opções. Ao menos eu acredito nesse exercício da escrita literária. É por aí que gosto de andar. Acredito numa escrita viva, em movimento, então Açougueira é pra mim esse marco, mas não quer dizer que cheguei em lugar nenhum, eu sigo caminhando, espero seguir até quando der, se me sentir fixada em algum lugar acaba a graça.


7 - O título "Açougueira" é bastante evocativo. O que levou você a escolher esse nome e qual é o seu significado dentro da trama?


Essa escolha do título é curiosa porque foi o último elemento que eu consegui alcançar no processo criativo, e foi só depois das duas leituras críticas que o livro passou, realizadas pelas escritoras Natalia Borges Polesso e Marcela Dantés, que eu consegui chegar nesse título, com a ajuda do olhar delas. O título provisório do romance era a Carne de Segunda, o mesmo título da dramaturgia, mas já não fazia sentido para mim as duas obras terem o mesmo título, porque o romance tinha ido por um outro caminho, estava tratando de outras questões, de outras nuances que a dramaturgia não dava conta. Então eu queria mudar o título, mas eu não estava conseguindo chegar em nenhum título que me parecesse suficiente, que desse conta do livro. Eu fiz uma lista de títulos bem infames, que não renderam nada além de boas risadas. E com a ajuda da Natalia e da Marcela, surgiu Açougueira. Primeiro surgiu “A Açougueira”, com o artigo, e que ainda não me parecia suficiente porque com a presença desse artigo essa açougueira ficou um pouco objetificada, ficou um pouco apontada enquanto um objeto, e isso é o contrário do que ela representa no livro. Ao tirar o artigo foi que tudo fez sentido para mim, porque eu acho que Açougueira, assim, limpo, sem nada antes, sem nada depois, causa uma estranheza, que é o que essa mulher causa nessa cidade onde ela habita, que é o que busco na linguagem de alguma maneira também e na estrutura do livro, e ela causa uma estranheza porque ela muda a ordem das coisas, então ela gera um desconforto. Eu acho que Açougueira causa uma estranheza e produz uma série de imagens, algumas até clichês, que a gente acha que vai encontrar no livro e não necessariamente encontra, e eu gosto de brincar com isso, com essa quebra de expectativa também. Ao mesmo tempo tem imagens que açougueira nos remete e estarão lá no livro. Eu acho que o livro não poderia ter outro nome, porque ele é a presença dessa mulher, é a voz dessa mulher, contando sua história, criando sua narrativa. É essa corporificação dessa voz dessa mulher que quando assume a profissão de açougueira assume também seu lugar no mundo, assume a direção da própria vida e do próprio desejo. Então, eu acho que o significado do título dentro da trama para além da profissão que ela assume, é o lugar que ela assume na própria vida, é o lugar em busca do próprio desejo. Açougueira é a corporificação dessa mulher, dessa voz que presentifica esse livro, e chega antes, já no título, porque ela se apresenta e não foge.


8- Em seu romance, você aborda a culpabilização da vítima em casos de violência doméstica. Como você espera que os leitores respondam a essa questão após lerem "Açougueira"?


Das pessoas leitoras eu não espero respostas, eu espero perguntas. Escrevi esse livro muito interessada numa abertura, uma brecha na narrativa para que a experiência do livro se dê no movimento das perguntas e não das respostas. Escrevi o livro me perguntando. O livro não fecha nenhuma questão e acho que também não facilita a vida da pessoa leitora para fechar uma questão. Ao menos é esse o exercício que eu tentei buscar no trabalho. Tentei construir de maneira que qualquer tipo de resposta a esse livro exija uma implicação na narrativa e uma tomada de território, uma tomada de campo, de escolher uma posição a partir dos próprios juízos morais, valores, etc. E o terreno é movediço, porque contraditório, como é a vida, nos movimentamos e o entorno se movimenta junto, não há território fixo. Busquei isso na escrita desse livro. Esse tipo de experiência. Claro que sei que a leitura desse livro no momento contemporâneo em que vivemos com seu contexto político e social pode impor uma determinada maneira de ler o livro, escrevi sabendo desse risco, mas ainda assim optei por deixar o terreno movediço, as aberturas para que outras leituras possam se construir, a depender da camada que cada pessoa leitora queira acessar. Todas são válidas. Isso é o legal de uma experiência de leitura, não tem certo e errado, nem melhor ou pior, tem a experiência daquele momento de encontro com a linguagem. Minha obsessão nesse processo foi buscar a ambiguidade o tempo todo, buscar a contradição nas personagens, nos acontecimentos, buscar a abertura da pergunta e não o fechamento da resposta. Então, para mim interessa que as pessoas se impliquem com o livro, com a narrativa, e se movimentem a partir dessa implicação, vivendo uma experiência estética que se desdobre para além do conteúdo, para além do que está sendo dito, mas também a partir da forma como está sendo dito, a partir da linguagem, desejo que a experiência da linguagem ressoe no corpo de quem lê, porque esse é um livro que eu tentei escrever muito também nesse sentido de corporificar a palavra, corporificar essa experiência estética da literatura. 


9 - Sua experiência como atriz e dramaturga influenciou a forma como você construiu os personagens e o enredo de "Açougueira"? Se sim, de que maneira?


Em geral, a minha experiência como atriz vem muito junto da minha escrita. Porque eu busco essa escrita corporificada, com as vozes trabalhadas num lugar do corpo mesmo. Uma performance da palavra. Mas em Açougueira a experiência em dramaturgia veio muito forte também. Eu retornei muito aos meus livros sobre teatro grego, com enfoque de estudo no coro trágico, pra poder entender melhor a estrutura das falas dos vizinhos. Eu tinha dúvidas se seriam depoimentos, se eles teriam nomes ou não, como trazer essas vozes. Eu busquei brincar com uma ideia de coro contemporâneo, que é a voz de uma cidade, mas é meio em tom de fofoca, de grupo do whatsapp, que aponta a “heroína”, jogando-a na arena dos leões. Em certo momento do processo até tentei me afastar do teatro, quando entendi que não seria uma adaptação da dramaturgia e sim uma outra obra, queria fazer literatura, quando percebi que era uma grande bobagem, dramaturgia é literatura, e essa fronteira entre os gêneros está aí pra ser derrubada em todos os sentidos. O teatro estava presente na fagulha que deu início a essa ideia e a ele eu poderia e deveria recorrer, e assim o fiz para destravar o momento de maior impasse que tive na escrita do livro, que foi justamente a segunda parte, hoje chamada de Coro de vizinhos. Açougueira é um livro de vozes, vozes muito presentes, e queria que estas vozes tivessem alguma qualidade de corpo. Na construção de cada figura depoente, os vizinhos da açougueira, eu busquei esse trabalho de diferenciação de cada personagem dando a cada uma daquelas vozes características concretas, como por exemplo “falar como quem atira pedras”, “falar como quem assopra flores”, fui brincando com estes estados performáticos das vozes, e lapidando palavra e ritmo a partir destas qualidades de ação, vendo como contorciam a palavra, a frase, o texto como um todo. Assim fui chegando na voz de cada figura, abrindo mão de caracterizá-las por nomes ou traços físicos. Estas personagens aparecem no romance identificadas por gênero, idade, gestos e ações repetidas, tudo vindo dentro de rubricas, como no teatro. Isso vem da minha experiência com o teatro, com um desafio maior de não contar com os corpos de atores e atrizes ali presentes na página, tendo que trabalhar isso somente na palavra. Na própria voz da Açougueira também busco essa corporificação da voz, trabalhando ritmo, sonoridade, lapidando a palavra em busca do corpo dessa figura, para que ela se presentifique na página e na leitura.


10 - Quais são os próximos projetos?


Em literatura eu tenho um livro de contos que está com uma primeira versão finalizada, já tem algum tempo, segue lá descansando para o futuro. É um livro que fala sobre a presença da infância no espaço urbano, e é um livro que mescla muito a literatura e a dramaturgia, acho até que foi nele que eu aprofundei mais radicalmente esse processo até antes do que Açougueira. Eu também estou às voltas num processo de um novo romance, mas que ainda vai levar anos para ser finalizado, um romance que aborda uma voz adolescente, questões de violência e família. No teatro, eu sigo com os meus projetos com o Coletivo Mar Cultural, um coletivo de arte e cultura sediado na cidade de Florianópolis, do qual eu faço parte. E a peça Carne de Segunda tem uma temporada programada para o mês de setembro na cidade do Rio de Janeiro. Além disso, estou focada em divulgar Açougueira. 



Lançamento: Florianópolis (SC), no dia 12/7, a partir das 18h30, na Livraria Latinas (R. Padre Lourenço R. de Andrade, 650, bairro Santo Antônio de Lisboa).



Adquira “Açougueira”, de Marina Monteiro, pelo site da editora Claraboia:

https://www.lojadaclara.com.br/


  


          


Marina Monteiro é atriz, arte-educadora, produtora e gestora cultural.Na área da escrita dedica-se à composição de textos literários, dramatúrgicos e roteiros. É autora do livro de formato híbrido “Comendo borboletas Azuis” (Multifoco, 2010) e dos livros de contos “Em nossa cidade amarelinha era sapata” (Patuá, 2019), vencedor do prêmio da Associação Gaúcha de Escritores (AGES) e “Contos de vista Pontos de queda” (Patuá, 2021), indicado ao prêmio Açorianos e vencedor do Prêmio Minuano de Literatura. “Açougueira” é seu romance de estreia.








Taciana Oliveira - Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector - A Descoberta do Mundo” Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.