Seis resoluções de São João | Crônica de Anthony Almeida

 por  Anthony Almeida__



         10.

Nas primeiras horas de mais uma das minhas estadias em Caruaru, dessa vez para viver as fogueiras de Santo Antônio, São João e São Pedro, as três na companhia de mamãe e papai, ele, distraído, cantarolou um forró de Jorge de Altinho: “Sou feliz, porque você voltou pra mim”. E repetiu, baixinho, fazendo o coro: “Sou feliz, porque você voltou pra mim”.


11.

Hoje, 23 de junho de 2024, véspera de São João e dia de fogo, não estou mais em Caruaru — precisei fugir. Do Recife, recebo no celular a foto da fogueira que o meu pai fez por lá. Um plástico amarelo cobre a lenha apagada e protege a madeira da chuva. Outra vez, chove nas horas que antecedem as chamas.

— Mais uma fogueira molhada? Dessa vez vou nem duvidar, essa vai queimar, sim, com certeza que vai — respondo, em áudio confiante.

Estive lá em Caruaru para a primeira fogueira do ciclo, que tinha que ser de Santo Antônio, mas meu medo da chuva não deixou que fosse. Estou aqui no Recife no dia da segunda. Sobre a terceira, não sei. Mas estou em Pernambuco. Aqui ou acolá, estou em Pernambuco. 


12.

A gente decidiu que a fogueira de Santo Antônio seria acesa dia 13 de junho. O fogo, então, reservou-se ao dia do santo. Meu pai, Antonio de Padua Almeida, e eu, Anthony de Padua Azevêdo Almeida, fizemos muitas e muitas fogueiras, seja na véspera ou no dia, às vezes em ambos, para Santo Antônio de Pádua. Fazia muitos anos que a gente não acendia uma juntos e esperamos com alegria pela data.

Só que dia e noite 13 foram implacavelmente chuvosos. Desejei estio todas as vezes em que olhei para o céu claro e para o escuro. Mas ele não veio. Meu pai desejou incendiar a fogueira na chuva mesmo. Mas pedi que ele tivesse paciência, que eu ficaria por muitos dias, que a gente podia levantar o fogo no outro, pode ser? Pôde.

Dia e noite 14 seguiram chuvosos. A véspera e a data de Antônio já haviam, também, se esvaído e meu pai, ultrajado, arengou com o céu:

— Tá bom São Pedro, já tá bom de chuva, já, meu véi. Agora é a vez de Santo Antônio, né a tua, não! — resmungante, completou — Vou acender assim mesmo, e ela vai pegar fogo, viu!?

Acocorou-se na frente da fogueira, caixa de fósforos em mãos, a lenha coberta por um plástico azul:

— Vai pegar, sim, mas menino! Eu acostumado a tá dentro dos mato, passar três-quatro dia caçando e pescando e fazendo fogo, no meio da chuva mesmo, pra poder comer, e eu agora num vou conseguir fazer fogo? Duvido! 

Eu duvidei. Mas o fogo pegou, com o plástico azul como combustível e tudo. Sob a água, que foi afinando ao longo da noite, a chama resistiu, se consumiu madrugada adentro e reafirmou papai como especialista do fogo. Ardente, foi uma destemida fogueira de Santa Clotilde, padroeira do dia 14 de junho.


13. 

"Recife: um pensamento", em 2022; uma realidade, em 2024. "Um onde vou morar? No cinza beira-mar, no cinza beira-rio, no cinza beira-verde?", num cinza beira-verde, pequeno verde, e grande cinza-avenida, ao lado. "Recife possibilidade de horizonte" e que assim se mantém. "Recife recinto, um sentimento de pertencer" e um forte pertencer, que me exige até a fuga do ninho para, em seus domínios, continuar a fazer lar. "Recife que me é sol" e que me é chuva. "Recife é mais que esse sonho bonito. Recife pode não acolher, pode agarrar pelos cabelos, esmurrar e chutar, empurrar, machucar e agredir" e machucou, agrediu, quebrou ossos e depois os remendou com uma chapa de titânio e sete parafusos, recuperou e cicatrizou. "Recife ímã. Recife radar", Recife situação e circunstância. "Recife já é", Recife já é.


14. 

Em Pernambuco é minha casa. No Recife, meu agora, vivo no prédio de número 600, que tem até uma frutuosa aceroleira no terraço. Na Caruaru de hoje está o lar dos meus pais, também meu. No Recife desta noite, num passeio pela cidade tomada de fumaça, vi oito fogueiras para São João. Na Caruaru de ontem, queimamos uma fogueira à Santa Clotilde que, na verdade, foi é para nós mesmos. Na Caruaru de muito antes, tenho meu primeiro chão e minhas memórias mais primitivas.

A primeira, registrei em croniquinha:


"Praça do Rosário, outubro de 1993:

Esse lugar é onde tenho a minha lembrança mais antiga. 

Eu-menininho estou correndo. Corro pelo beiral do tanque da fonte do Rosário e minha mãe, braços abertos, me chama prum cheiro".


Outra, muito próxima àquela, talvez a minha segunda memória mais antiga, teve fogo. Neste dia de Santa Clotilde, enquanto queimávamos a saudade com os estalos da chama e o chiado do fogo sob o chuvisco, minha mãe, depois de me trazer um pedaço de pé-de-moleque, recordou:

— Tinha um sofá bem acabado, já todo puído, lá em casa, aí teu pai tava arretado com ele. A gente morava no Rosário Velho, ainda era 1994 ou 1995. Aí chegou o tempo de São João e teu pai arrastou o sofá pro meio da rua, botou ele em pé e tocou fogo. Foi um fogaréu dessa altura e que não tinha como apagar. A labareda ficou faltando um palmo pra chegar nos fio dos poste. Aí compadre Zé Pedro: vou chamar o bombeiro! E o sofá tome queimar! Teu pai não tem a pareia não. Nem se ligou que o negócio era cheio de espuma e plástico. Ele até tentou apagar, mas não conseguiu. Aí o bombeiro foi e apagou. 

E eu me lembro, me lembro desse fogaréu todo. Essas memórias e este presente, num Pernambuco de ontem e de hoje, me reafirmam: aqui é casa minha. 


15. 

Acabou-se o mês de junho. Não voltei a Caruaru para as datas de São Pedro e tampouco fiz ou vi fogueira no Recife. Meu pai, outra vez, na véspera do terceiro santo, me mandou foto da sua. Primeiro apagada, e também coberta por um plástico, este transparente; depois, flamejante, mesmo sob a garoa, como de costume. 

As obrigações de minha cidade-lar só me permitiram retornar à minha cidade-ninho em julho. Agora, 6 de julho de 2024, repito movimento que, por anos, tem me feito estar com um pé lá e outro cá. Minha mobilidade, neste agora, é entre o Atlântico e o Agreste, entre Recife-lar e Caruaru-ninho, entre e dentro de Pernambuco.

Chego em Caruaru e a chuva fininha e continuada, como diz mamãe, me recebe. Sou passarinho que já voou por aí, cresceu e viveu muitos rumos. Voltar ao ninho, e não ser mais filhote, me permite percorrer os caminhos sem temer os relâmpagos que as memórias trazem e os trovões que ressoam quando elas me atinam que, no agora, este ninho é só um lugar de reminiscências.

Crio coragem e, esfuziado pelo mel do presente, desdobro uma nova vivência. Do Centro de Caruaru à casa dos meus pais tomo um 109 | Rendeiras/Morada Nova e desembarco no começo das Rendeiras com a intenção de cruzar o bairro. Mesmo sob a chuvinha, sei — na verdade, confio e espero — que minhas asas vão resistir às intempéries e às mudanças do bairro-berço. Forte, adulto e independente, vou levar, eu mesmo, um banquete ao ninho e aos meus pais: pizza e Pepsi.

Decido que a pizza vai ser comprada na Bell'Itália e me alegro ao ver que a pizzaria continua a existir, mesmo depois de tantos anos. Pego uma meia bell'Itália, meia portuguesa. A Pepsi busco no Mercadinho Xavier, mas ele não existe mais. Há é um Cestone Supermercados. Pelo menos tem Pepsi e isso é um alívio. 

Rendeiras adentro e muitas são as mudanças. A Pães Belos parece estar permanentemente fechada, não panifica mais, o que me desanima. Uma das igrejinhas evangélicas virou uma lanchonete, outra é um mercadinho; talvez tenham se mudado, mas não deixa de ser interessante notar que os edifícios continuam a alimentar as pessoas mesmo em novas funções. Algumas caras conhecidas cruzam com a minha, me reconhecem, ainda que eu esteja mais velho e com uma caixa pizza em mãos, e trocamos cumprimentos sucintos, cabeceios bovinos, seja por não termos mais assuntos, ou porque, sob a garoa, é preferível o aceno ao papo.

Já não é mais São Pedro, mas a chuvinha é uma forma de recordar sua presença. A nossa fogueira será, mais uma vez, a felicidade do reencontro, saboreada com pizza e Pepsi, porque eu voltei pra eles.


— Pernambuco. Junho — julho, 2024.





Anthony Almeida
nasceu em 1989, em Caruaru/PE. É cronista, geógrafo, professor e editor-adjunto da RUBEM – Revista da Crônica. Atualmente desenvolve pesquisa de doutorado em Geografia Literária na UFPE, campus Recife, sobre o tema ‘Geograficidades do mundo vivido-escrito na crônica brasileira’. Escreve para a Revista Mirada. Saiba mais em: https://lin