Trouxe para a escrita o aconchego da minha casa | Entrevista com Mila Nascimento

 por Taciana Oliveira__


                                                         
                         
A poesia de Mila Nascimento nasce da dor e da necessidade de expressão. Em seu livro "Poemas para antes do banho, durante o café e depois do abandono” (Patuá, 2024), ela transforma experiências traumáticas pessoais em versos, encontrando na escrita uma forma de desabafo e cura. A obra, que aborda a (re)construção de um eu-lírico feminino violentado, oferece uma leitura sincera, desnudando as violências e as lutas internas de muitas mulheres. Na entrevista a seguir, Mila compartilha suas inspirações, processos de escrita, e as conexões que sua obra estabelece com outras mulheres que vivem experiências semelhantes:


1. O que a inspirou a transformar experiências pessoais traumáticas em poesia no seu livro “Poemas para antes do banho, durante o café e depois do abandono” ?


Na verdade, eu não precisei me inspirar. Diante de tudo que estava acontecendo, escrever foi a forma que encontrei de desabafar, de colocar para fora toda a dor que estava me sufocando. 


2. No prefácio, Airton Souza menciona que sua poesia é uma arma contra as violências seculares. Como você enxerga o papel da poesia na luta contra o machismo e a misoginia?


Quando li esse trecho do prefácio do meu querido amigo Airton, pensei: Nossa! Ele tem razão! E que forte isso. De repente percebi que minha escrita conversava não só com as minhas dores, mas com a de tantas outras mulheres que, infelizmente, passam por isso todos os dias. 


3. A coletânea aborda a (re)construção da subjetividade de um eu-lírico feminino violentado. Como foi o processo de escrever sobre essas experiências tão pessoais e dolorosas?


Foi libertador! Lembro que por muitas vezes, estava angustiada, com o coração apertado e no momento que colocava no papel, a gastura sumia e eu me sentia em paz. 


4. Você fala sobre como sua escrita se conecta com outras mulheres que viveram experiências semelhantes. Pode compartilhar algum feedback ou experiência que recebeu de leitoras que se sentiram representadas por sua obra?


Isso tem sido muito significativo! Alguns pacientes chegaram a me contar que estavam vivendo abusos. Cheguei a acompanhar uma paciente até a delegacia da mulher,  que tomou coragem de denunciar o marido, após ler meu livro. Outra senhora me disse que depois que leu meu livro, compreendeu que estava vivendo um relacionamento abusivo e conversou com o companheiro a ponto de mudarem sua relação. Isso me deixa muito feliz e com a sensação de missão cumprida.  


5. A obra tem um tom coletivo e político. Como você vê a importância de trazer essas questões para a literatura e qual impacto espera que seu livro tenha na sociedade? 


Acredito que a Arte tem essa força. E o mais legal é que, como médica, ocupo um papel de privilégio social. Não gosto disso! (rs) Mas é uma realidade! E quando conto o que aconteceu comigo, deixo claro que as violências contra mulher acontecem em todas as esferas sociais e não apenas contra mulheres periféricas e pretas. Isso é importante, pois une todas nós. 


6. Seu livro é composto por trinta e um poemas viscerais que abordam a importância da arte na vida de uma pessoa. Como a arte e a poesia ajudaram você no seu próprio processo de cura e reconexão consigo mesma?


Não sei explicar ao certo. Mas, o bem-estar da arte, seja da que produzo ou da que consumo, sublimam qualquer tipo de tristeza ou desespero. Posso ter tido a pior notícia do mundo, mas vou lá, assisto a uma peça de teatro e volto a ver a vida com alguma esperança. 


7. O prefácio também menciona um jogo semiótico e sinestésico em sua escrita. Como você trabalhou esses elementos na construção dos seus poemas? 


Meu livro é um grande e honesto desabafo. Sendo assim, tentei trazer um universo de acolhimento para a escuta. Entendi que se as pessoas sentissem bons aromas, estivessem em uma luz confortável, um sofá macio, etc. Seria melhor para ouvirem as minhas dores. Eu trouxe para a escrita o aconchego da minha casa. Como se estivesse recebendo na minha sala de estar, o leitor como amigo para quem eu iria contar a minha história. 


8. O título do livro sugere a desconstrução das violências naturalizadas contra as mulheres. Como você escolheu esse título e o que ele representa para você? 


A escolha foi orgânica. Eu realmente escrevi antes de tomar banho, durante as refeições e depois de tudo que aconteceu. Não tinha como ser outro título. Eu realmente escrevi em momentos diversos e escolhi o título mais realista possível. 


9. Além de escritora, você é médica e atua em várias áreas da medicina. Como você concilia essas diferentes facetas da sua vida e como elas se influenciam mutuamente? 


Minha mãe dizia que nasci escritora e me tornei médica. Para mim, lidar com a vida das pessoas é um grande privilégio e oportunidade. Lidar com pessoas é divino! A gente compartilha histórias. E quando percebi que ser eu mesma, sensível e atenta às dores dos outros, bem como às minhas, fazia de mim uma médica melhor e uma escritora com muito repertório, me senti mais forte e capaz de seguir por caminhos novos. 


10. Você menciona que a escrita foi um mecanismo de denúncia, cura e catarse. Pode nos contar mais sobre como a escrita impactou sua vida pessoal e profissional? 


Pessoalmente me devolveu paz e autoestima. Me orgulho de cada poema! Lembrei do que eu era capaz, dos talentos que tinha e que haviam sido destruídos pela sucessão de violências. Profissionalmente, abriu portas no campo da literatura e selou a minha qualidade como médica humanizada. No fundo, a escrita que me devolveu de volta a mim mesma. E, plena de mim, pude voltar a sorrir.



Seleção de poemas do livro "Poemas para antes do banho, durante o café e depois do abandono"


no luto da morte do meu útero eu escrevi


duas semanas

que perdi

a casa que me habitava

duas semanas

que fiquei sem

a morada primeira dos filhos que pari e de

Joaquim que perdi


só sobrou essa daqui

que tem minha cama

luz elétrica

internet

comida e água

mas essa daqui não é própria!

é alugada

a pensão não dá pra nada


sabe como é

filho é feito em quatro pernas

4 paredes

às vezes 4 minutos se a gozada for

rápida e tudo bem se a mina não

sentir nada

orgasmo é coisa rara

a gente já está acostumada


filho é feito em 4 pernas

mas depois

duas saem andando apressadas

só duas ficam

embalam

cuidam da crise de asma na madrugada



poema para antes do banho


nua

toalha

no corpo

C O R P O

Bonito

E X A U S T O

solto

cabelo

sinto meu pelo

depilo

pra quê? pra quem?

quem foi que disse que mulher tem que ser lisa,

menina? menina tem que ser o que quiser

peluda

sem pelo

peituda

sem peito

coisa chata isso...

M U L H E R sou eu

desejo na carne

medo de outro começo

tempo

__ pausa

________ R E S P I RA


_____________ PENSA





minha amiga Sarah, a poeta, escreveu sobre a

violências que, só por sermos mulheres, vivemos.


eu que tive minha coluna quebrada

minha mente violentada

minha carne espancada

minha verdade desacreditada

sei bem do que tu fala, Sarah


é tudo verdade!

a gente vira fruta podre

vizinho é mesmo omisso canalha


sobre as pernas: as minhas não mexiam

não sentia nada

sucumbi à gravidade

em uma espécie de desmaio visceral

catarse diante à realidade


casamento

planos

lealdade?

tudo loucura social

“A senhora sabe que essa história toda não é real? E

que pode acabar com a vida do Doutor fulano de

tal?”


a vida dele importava mais

imagina! coitado do nobre rapaz!

a nossa vida vale menos

mulher, louca, descontrolada

se for preta ainda, infelizmente pode ser mais prejudicada



resgate


faço isso desde sempre

de pequena, adolescente

quando adulta, parei


muito filho, correria

para ser eu mesma, tempo eu não tinha

e dos livros me afastei


sentia uma falta danada

saudades de ler no cemitério da

Consolação ou na igreja da Voluntários

da Pátria


comprei estante

biblioteca agora, estava na sala

mas a leitura continuava abandonada


e foi só quando o casório acabou

e a minha coluna quebrou que eu pude me ver outra

vez e desafiei: VOU LER UM LIVRO POR MÊS!


foi tão bom me encontrar

me ver, me libertar

e para os meus livros, voltar


a gente precisa

perder um bocado de coisas

para entender que não precisa de metade

delas tantas inutilidades tolas

que escolheram por mim, por nós, por elas




poesia da noite depois da asfixia do dia


o beco para as minas é assim:

sem saída

mas com ECO

dos gritos


excessos de NÃO

e faltas de sim



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Mila Nascimento nasceu em março de 1979, em São Paulo, e atualmente mora em Campinas. Mãe de três, Médica Endocrinologista, Sexóloga e Emergencista, Mila atua diariamente na prática clínica, além de atender, voluntariamente, pessoas em situação de vulnerabilidade social. Escreve desde a infância, mas foi em 2022 que sua Arte ganhou reconhecimento, sendo premiada na Categoria Poesia Nacional no 57º FEMUP, Festival de Música, Conto e Poesia de Paranavaí–PR. Mila é autora de Poemas Paridos de Cócoras — porque assim dói menos (Ed Minimalismos, 2023) e de Poemas para antes do banho, durante o café e depois do abandono (Ed Patua, 2023), além de ter publicado em blogs e revistas literárias como Jirau de Histórias, Revista Artes do Multiverso, Barda Literária, Poesia na Alma, Alpendre Literário, A Casa Inventada e Contos de Sansara.







Taciana Oliveira - Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector - A Descoberta do Mundo” Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.