Contos para saborear, de Vanessa Meriqui

 por Vanessa Meriqui__



                                                          
O Patuá


O moço passava diariamente por ali. Vinha cavalgando ligeiro, encomenda na bagagem para entrega na cidade. Mas, ao aproximar-se da cerca que circundava o quintal, fazia o cavalo amansar o trote, enquanto ele mesmo tentava acalmar os pensamentos. Pacto velado entre cavaleiro e montaria, necessário para admirá-la sem sustos. Ela levantava os olhos, para logo os baixar, antes que faiscassem. O silêncio tomava conta, embora os olhares cruzados num átimo de segundo gritassem desejos. E ele se ia. Ela estancava a tempestade repentina que provocava estardalhaço em seu peito para continuar a limpar o quintal, alimentar porcos e galinhas, colher verduras, fingindo calmaria na feitura das obrigações diárias no sítio.

Até que um dia, o galopar mais forte anunciou a coragem do moço. E ela ouviu homem e animal interrompendo o cavalgar. A voz veio do alto, grossa, decisiva. “Vou me casar mais tu”. Um levantar de olhos mais demorado desta vez. Um arrepio. Guardou consigo aquilo que não sabia ser promessa ou ameaça. No dia seguinte, ele arrriscou chegar mais perto. “Sabe cozinhar?” Mãos em concha protegendo os olhos do sol, balançar afirmativo de cabeça. O sorriso precedeu as palavras. “Avise em tua casa, vou me casar mais tu”. E se foi.

Ela avisou, a mãe apavorou-se, pai e irmãos montaram guarda no quintal, armados. O moço sumiu. O que restou para ela foi a dor do abandono e o descompasso do coração cada vez que via qualquer sombra a cavalo avançando no horizonte, esperança transformada em tristeza ao descobrir que não era ele. O tempo passou, a família baixou a guarda. 

Numa manhã estranhamente silenciosa, em que não se ouvia nem o piado das galinhas ansiando pelo milho que caía displicentemente das mãos da moça, uma nuvem de poeira surgiu de repente. A jovem arrepiou-se, conhecia o cavalo que vinha na carreira. Não teve tempo de soltar a lata com o milho das galinhas, não conseguiu fazer nada, a não ser sentir o arrebatamento provocado pelas mãos fortes do homem. Agarrada pela cintura e encaixada na sela. Nada foi dito, nenhum grito se ouviu. Seu corpo colado ao dele tremia com a mesma intensidade do vento que batia em seu rosto. 

Somente quando chegou em uma casa muito distante é que ele apeou e, com delicadeza, a ajudou a descer do cavalo. Pela primeira vez mergulhou demoradamente nos olhos dela, que dessa vez não se desviaram. “Vou me casar mais tu”, repetiu. A palidez foi dando espaço para a vermelhidão de vergonha e desejo, a expressão de susto aos poucos se transformando. Era feição de reencontro no semblante da jovem, olhar profundo de quase memória.  Ela baixou a cabeça, sem dizer palavra. Ele explicou que não a tocaria, a deixaria aos cuidados dos seus, com promessa de voltar. Porque ela acreditaria nele? Não sabia responder, mas precisava acreditar, seu caminho não tinha volta. Mas tinha uma única certeza, não diria não ao homem que a roubara de seu quintal e muito menos ao seu destino.  

Se houve desarmonia no ficar com aquela família durante a ausência dele, cuidou para que ninguém soubesse. Também não fez perguntas e agiu como se o seu lugar sempre estivera reservado ali. Os da casa a trataram bem, era a noiva escolhida por ele. Só então ela se deu conta do respeito que lhe dedicavam, como se houvessem esperado por ela desde sempre.  Ele voltou dias depois, com um padre, que os casou no mesmo dia, sem convidados, mas com cerimônia, onde não faltaram flores, sermão e o vestido branco guardado entre alvos lençóis. A família da moça não estava presente, ela não reclamou, mas pediu que ele a levasse casada até o sítio de onde a roubara. O moço não deu explicações aos sogros, mas prometeu que a faria feliz. E fez.

Dividiram com amor, durante os anos que se passaram, todos os seus desejos, alegrias, medos e um simples viver. Apenas um segredo foi guardado: mesmo que ela insistisse, ele nunca contou o que significava o patuá que não saía de seu pescoço. Ele sequer permitia que ela colocasse a mão. Por inúmeras vezes, em noites mais tórridas de amor, ainda que enlouquecido de desejo, ele sabia parar o gesto da mulher, impedindo que ela tocasse no pequeno amuleto que enfeitava o seu peito. Ela foi acalmando a curiosidade, com o tempo deixara de se preocupar com o adereço que viu pendurado já na primeira noite após o casamento quase colado à pele do marido.  Mesmo com o fio de couro que segurava o patuá já fino, desgastado, ele não o tirava, tomando apenas o cuidado de escondê-lo debaixo da camisa. 

Assim, juntos, mal sentiram o tempo a devorar-lhes a juventude e toda a maturidade. Criaram filhos, alcançaram o embranquecer dos cabelos quase ao mesmo tempo e cumpriram a promessa de não distanciarem seus passos um do outro, seguindo o mesmo caminho com a mansidão que os anos lhes trouxeram.

Deu-se que, em uma manhã, o despertar da mulher veio depois que o marido havia saído para a lida. Corpo ainda quente entre cobertas, planejou seu dia, pensou em fazer polenta com costelinha de porco – prato predileto dele. Esticava-se ainda quando uma de suas mãos esbarrou em algo no travesseiro ao lado. Levantou-se rapidamente, fosse algum inseto, o pegaria. Viu então o patuá sobre o travesseiro, com o fio de couro rompido. Pegou-o delicadamente, enfim tinha em mãos a joia por demais desejada, que materializava a única história não contada entre eles. Ainda ajoelhada na cama, ouviu passos apressados. Ele paralisou na porta, pálido. Com o amuleto em mãos, ela lhe sorriu, comemorando o fato de ter encontrado o patuá, não haveria risco de perdê-lo fora de casa. Avisou, animada, que trataria de conseguir outro fio de couro e que à noitinha ele já o teria de volta pendurado em seu pescoço.

“Não se preocupe, não preciso mais”, a voz veio da porta mesmo. Depois um suspiro longo, ele aproximou-se da cama, segurou o rosto da mulher e olhou-a demoradamente. Mergulho na alma pela janela dos olhos. “Deixa disso, homem”, ainda era tímida. Ele sorriu pequeno, o beijo na testa dela estalou carinhoso, longínquo, secular. Sem dizer mais nada, saiu devagar e nunca mais voltou.


* Este é um conto do livro “Contos para saborear", publicado pela Editora Patuá e pode ser adquirido neste link: clique aqui



Vanessa Meriqui Escritora, jornalista e contadora de histórias. O seu primeiro livro de contos com temáticas femininas, MARIAS, foi publicado em 2023, pela Editora Oito e Meio, responsável também pelas antologias Amores Modernos, Contos Invernais e Cancelados, que trazem outros contos da autora. Ainda em 2023, seu livro Guerreira da Mundaú foi publicado pelo projeto Biografias Colaborativas. Com Contos para Saborear, a autora mantém sua proposta para dar voz às mulheres, assim como em seu romance ainda inédito.