por Adriane Garcia__
A vida é isso depois passa. Se há luz, compreendemos a tempo que ela só existe no contraste. Quem? A luz ou a vida? A luz no seu contraste com as trevas diárias; a vida no seu contraste com a morte, que pode ser também “morte em vida”. Tudo isso nos comunica esta coletânea de poemas de Caio Carmacho, “a vida e não o seu contrário/esse horror/essa alegria”.
Tematicamente profundo e tecnicamente impecável, este livro nos mostra um poeta maduro no seu ofício de construir versos e de comunicar a poesia. Utilizando uma linguagem coloquial, contemporânea, Caio Carmacho se aproxima de nós, fala-nos muito perto, garante nossa identificação com um eu-lírico que está na rua ou na casa, na cozinha ou no quarto, com os amigos, com a esposa, com a filha, nas redes sociais, só, muito só. Ele nos faz pensar sobre o tempo — a vida é isso e depois passa — com uma certa melancolia, um incômodo existencial de quem caminha sem mapa, sem manual, tendo que descobrir, na prática que “o caminho mais fácil/ nem sempre é/ o melhor/ caminho”.
No caminhar, porque é uma coletânea de um eu-lírico atravessando as páginas como quem atravessa os dias, o calendário devorador, o poeta nos faz ver por analogias, metáforas, paradoxos, antíteses, um cotidiano redescoberto, desmecanizado pelo filtro da poesia. Se o tempo nos come cada segundo mais um pouco, o poema é uma tentativa de deter essa voragem. Daquilo que é trivial, dos animais comuns, dos objetos comezinhos, os versos surpreendem com epifanias. Há ainda os poemas visuais certeiros, perguntando ironicamente “pra que simplificar se a gente pode complicar”? Caio Carmacho une forma eficaz e crítica a essa mesma forma, estendendo-a para pensar a vida humana.
Há uma consciência aguda sobre o sistema em que vivemos: capitalista, neoliberal, excludente. E é muito interessante notar que o poeta constrói muitas das impressões da voz-lírica sob o impacto dessa percepção. A vida é isso depois passa mostra o quanto a exploração do trabalhador reduz a vida (e vida é tempo), compromete o amor, agrava a desilusão, complica tudo que já nos é — por condição humana — falta e fracasso. A recorrência de um complexo de Midas ao contrário denuncia: “e tudo que minhas mãos tocam/ torna-se papel higiênico neve” — o ouro possível. É difícil não fracassar com tudo contra. Há algo de resistente nestes versos que se torna quase uma novidade. Em tempos em que as identidades podem correr o risco de atuar apenas na divergência, Caio Carmacho nos traz para a convergência das identidades, o que fica bem explícito no poema “Uma rosa é uma rosa é uma rosa”. Não só que nenhuma identidade tem a primazia da moral ilibada, como todas as minorias sofrem e são espoliadas como classe trabalhadora.
Se o lirismo encontrado neste A vida é isso depois passa nos ilumina para aquilo que não damos atenção, seu antilirismo nos coloca com os pés no chão: um chão que precisa ser limpo, um poeta que limpa o próprio chão. Yoshi Oida, um mestre do teatro japonês, no livro O ator invisível, ensina a profunda ligação entre arte e limpeza: “Antes de começar qualquer coisa é preciso limpar o espaço de trabalho. Esvaziá-lo, desfazer-se de tudo que é inútil”. Mas Oida explica que isso deve ser feito com a atenção máxima voltada para o ato. E que poesia das coisas poderia ser percebida sem a atenção fina? Aqui, vemos o poeta teimosamente limpando o que ficará sujo novamente, lavando louças que existem enquanto houver existência, cuidando da higiene de sua filha. Como em um “Samádi” que retém o sagrado do que é mundano, Caio Carmacho nos entrega versos — também depurados e limpos — que existem apesar da máquina de moer que é o sistema em que vivemos, pois “o que move o mundo/ senhoras e senhores/ meninos e meninas// é a teimosia”.
PARAÍSO
tenho 40 anos e ainda moro
com meus pais
atravesso uma planície inteira
de braços abertos
subitamente adquiro poderes misteriosos
e tudo que minhas mãos tocam
torna-se papel higiênico neve
PETITE MORT
a pulsão de vida é maior
que o rigor da morte
mas só saca isso
quem morre um pouquinho
todo dia
ganhar & perder
dois lados do mesmo
evento
nascemos para o fim do mundo
e para ele vivemos
nutrindo dívidas
e sonhos
na instantaneidade
do instante
quem nasceu dinamite
nunca vai ser diamante
EPIFANIA
ônibus com ar-
condicionado de manhã
tem cheiro de vidas passadas
é como abrir uma lata
vencida de biscoitos
amanteigados
é como se esconder
no armário da avó
até darem por sua falta
é como cheirar as calcinhas
recém-lavadas de sua mãe
no varal
é como entrar na caixa de pandora
e fechá-la por dentro
é como viver sem esperanças
***
A vida é isso depois passa
Caio Carmacho
Poesia
Ed. Patuá
2023
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)