Coisa Perdida, de Taciana Oliveira | Resenha de Luiz Carlos Lacerda

 por Luiz Carlos Lacerda__



Como se não bastasse ter realizado o belíssimo filme Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo (sobre a vida e obra da escritora), um mergulho profundo na sua Literatura, longe do convencionalismo formal da Linguagem dos documentários, deixando-se encharcar por essa Poética profunda que descreve o nascedouro dos sentimentos humanos, *Taciana Oliveira apresenta seus poemas neste livro de aparentemente coisas perdidas, como se colhesse, nos subterrâneos da memória, a seiva que alimenta o seu caminho e testemunho. Numa contagem regressiva alinha símbolos do seu cotidiano espalhados entre ladeiras de Olinda e as veias onde corre o sangue que a mantém atenta ao universo que circunda sua permanência entre nós. Como nos poemas dos primeiros modernistas de 22, não se esquiva de relatar a tal da realidade social, quando diz “Os supermercados estão cheios de barrigas vazias.” 

Repetindo nessa imagem, também surrealista, a atmosfera de chiste inaugurada e recorrente na Obra de Mário de Andrade: “ Todos riam do silêncio/e era o início do concreto,/era a noite sem vaga-lumes.” 

Assume essa gangorra de indefinidos limites entre o desespero e o lúdico: “Não enxergo o arco-íris/que cerca o paraíso,/mas desconfio que/anjos dancem na chuva.”

O que escreve é Prosa ou Poesia? Prosa poética ou um diário íntimo inundado de "poesis", como Gide fez no seu Journal e Lúcio Cardoso e Walmir Ayala fizeram em seus Diários? E logo se define: “Costuro frases, /faço da ofensa poesia.”

Como Clarice diante do estertor do mundo que se despedaça ao seu redor: “Não articulo saudações líricas./Não deixo recados para o futuro./Não admiro leões no zoológico./Não vendo ofertas na vitrine.”

E reitera numa espécie de ex-libris existencial:“Dispensei a saída de emergência,/ando sempre à margem.”

Declarando seu ofício de Poeta no verso “ Vagueio pela memória/a procurar quintais.”

Uma Poesia que reafirma sua incapacidade de qualquer enquadramento (como o citado Ginsberg da Beat Generation) porque: “Não sei fazer haicais,/não danço,/ando na contramão,/tenho os bolsos vazios.”

Como Rimbaud, como Baudelaire, como o cearense Carlos Emílio. Não sabendo deixar de “perder a ternura”, como uma geração inteira disfarçou seu desencanto com o desmoronamento das utopias, pois: “ O que eu não tenho mais/O vento empurrou para dentro das gavetas/ou a tristeza tomou sem pedir desculpas.”

E perplexa, com pressa de chamar de vida outra vereda, questiona:“ Até quando essa água vai/escorrer pelos meus olhos?”

É a serena desesperada que se definiu Cecília, num momento em que se deixou escapar de seu lirismo. Apoiada no testemunho, Taciana sabe que “memória é uma gaveta de entulhos/um quarto úmido, um dente quebrado/uma terra seca, um rio sem barco.”

Observa seu Tempo sem o panfletarismo fácil que afasta a Poesia, maculada por bandeiras imediatistas desfraldadas, e nos propõe “Subverter lógicas /ampliar navios/dissecar versos/vísceras /Brasil.”

Sem o moralismo do “tudo bem”, antes do Manifesto de John Lennon declarando que o sonho acabou, assassinado em seguida. Porque ela não sabe disfarçar que “Tudo que é música escorre no sangue”, e “Volto ao samba mergulhado na tristeza.”

E ainda: “Os vaga-lumes estão mortos./Todos estão mortos!”

Numa talvez inconsciente evocação do poema de Cecília sobre a morte do vaga-lume:

“Quebrou-se a máquina breve.

E o maior sábio do mundo 

Sabe que não a conserta.”

Mas manuseia com suas mãos de fada a pretensão de “Arrancar os pregos./Pintar o limo das paredes./Afogar o desespero no ralo./Suspender as misérias diárias.”

Mas sem acreditar nos manuais que vendem esperanças baratas. Um livro IMPERDÍVEL com a belíssima capa de João Oliveira Melo.



*Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo” Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.




Luiz Carlos Lacerda —
diretor, roteirista e produtor, atuou como assistente de Nelson Pereira dos Santos em diversos filmes de Jurandyr Noronha e de Roberto Pires. No decorrer de sua carreira, participou da produção de longas-metragens notáveis, tais como "Mãos Vazias" (1970), "O Princípio do Prazer" (1979), “Leila Diniz" (1987), "For All" (1997), “Viva Sapato!" (2004), "Casa 9" (2011), "A Mulher de Longe" (2012), "Introdução à Música do Sangue" (2017), "O Que Seria Deste Mundo Sem Paixão?" (2019) e "Nelson Filma o Rio” (2021). Em parceria com Clarice Lispector, coescreveu o roteiro do curta "O Ovo" (1974) e várias séries documentais para a televisão. Publicou os livros de poesia Amorosa Ciência e Labirinto Febril (Selo Mirada, 2022). Lançou em 2023, Celebrazione, longa-metragem que relembra a visita do cineasta Pier Paolo Pasolini ao Rio de Janeiro em 1970, além de celebrar o seu centenário.