por Taciana Oliveira__
1 — O que te inspirou a escrever “Caramelo quer ver o mar”?
A soma dos últimos anos fez com que cada um de nós pensássemos em alguma mudança, conscientemente ou não, nas camadas de nossa relação com o mundo. Atravessar sem se deixar ir completamente, lenta, profunda transformação. Essa soma pode ser medida pelas notícias de jornal, pela forma como a natureza responde sem suturas, pelo individualismo coletivo que nos afasta cada vez mais da chance de entendermos a nós mesmos a partir do outro. Caminhar perto do chão com uma consciência que narra as ruas, é revelar um inventário de nossas mazelas mais íntimas. Nomear essa voz com um lugar afetivo de consciência popular, com uma liberdade animal, com um tom de riso e fé, é olhar de frente para as forças que a poesia pode flertar com as chaves inventivas para as portas da realidade. Caramelo quer ver o mar é um campo de desejo que é meu, mas que também deve ser de muita gente. A água é sempre ensinamento, observar o seu movimento me acalma. Ter a semana cheia de trabalho é uma regência de onde não consigo fugir, mas a chance de ver o mar, de alcançar momentos de calmaria pensando em ver o mar, isso, sim, é uma terapia que se faz com as próprias mãos. Escrever um livro é a parte que não consigo ignorar, deixar de ser. Escrever é mudar o que se pode, esse livro nasceu como todos os outros.
2 — No livro, Salvador é apresentada como a geografia de todas as cidades e a importância de andar coletivamente é destacada. Como você vê a relação entre a cidade, a poesia e a coletividade na sua obra?
Pensar a cidade como um poema, seu corpo constantemente editado por nossos corpos e editando eles também, em uma escrita de biografemas, como bem escreveu Barthes, que revela e esconde ao mesmo tempo, é essa tarefa de escrever Salvador ou qualquer outra geografia que se faz espelho por dividir o agora. Certa vez, assisti a um documentário em que Caetano Veloso dizia que Nova York era igualzinha a Santo Amaro, com pessoas pelas calçadas. Salvador remonta a sua função histórica inaugural, a que serve de chão para se iniciar e percorrer o caminho, o que não nos afasta do agora, ao contrário, reler as ruas é perceber mais sobre a literatura que faço. A memória, o afeto, a família, o cotidiano, são atravessamentos que alimentam o fazer literário. A poesia é representação estética, mas também palmilha um caminho de maturação que se aproxima do espiritual, sem perigo romântico algum. Escrever/ ler poesia hoje é andar coletivamente. Há um apelo que ela consegue traduzir em suas possibilidades de refinamento pela linguagem, um diapasão natural a criar curativos que podem segmentar o peso, narrar uma didática para nós mesmos entendermos o existir. É como se facilitasse, quando se aumenta a intimidade, por tocar no coletivo em recortes que lemos, por vezes displicentemente, como unidades isoladas — por mais que sejam líricos, os versos se agarram em ranhuras sociais que escrevem refletem a vida. Escrever sobre Caramelo, o vira-latas mais conhecido do país, este símbolo das ruas brasileiras, é um exercício individual que se espraia em uma memória coletiva. Ter a memória como ferramenta de construção de uma poética é parte do projeto literário que preciso continuar. Quando escrevi outros livros que partiam da mnemônica familiar, eu também criava um lugar de pertencimento que toco as pessoas por serem locais também de uma afecção natural. Há temas que envolvem o que fomos e o que somos que me dizem muito e são importantes para nosso tempo de imediatismos, as formas da cidade, a saudade, os desejos, há forças que se propagam muito facilmente quando lemos do outro o que também é nosso. Andar por Salvador, a partir das patas de Caramelo, é uma forma de renovar a fé.
3 — É citado que o livro tem dois vetores: do poeta-que-lê e do leitor-que-escreve. Pode nos falar mais sobre como você imagina essa interação com o leitor?
Essa é uma passagem do texto de apresentação do livro do querido professor e poeta Moisés Alves, alguém que admiro muito por sua capacidade intelectual de chegar em lugares de uma forma tocante. E ele tem total razão, pois este livro exerce a função de leitor, é um livro leitor. Recortar, costurar e construir, procedimento que ajuda a criar, pois em diversos momentos o leitor encontra a presença da leitura a partir de uma biblioteca pessoal que inscreve na obra a força de uma toada feita de livros. Caramelo percorrendo o caminho do mar, marca e se deixa marcar. Eis a importância das referências, da força dos outros, escrever é andar acompanhado a todo momento. Acredito também que a leitura é a principal forma de escrita, o início de tudo. O poeta-que-lê não anda separado do leitor-que-escreve, porque eles são a mesma voz. Caramelo quer ver o mar é também uma experiência que busca plantar no leitor sementes de literatura a partir de pequenas porções de sabores do mundo.
4 — Sua poesia parece incorporar uma variedade de vozes e influências. Como você trabalha essa multiplicidade de sonoridades e referências em seus poemas?
Este foi um projeto que concentrou uma intenção de composição plural, pois quando penso no Caramelo consigo ver sua natureza múltipla. Um lugar de vozes que vai desde a sabedoria popular até a ciência acadêmica mais apurada. Tá tudo lá. Não dá para escrever neste tempo sem revelar de onde viemos. Venho das tias que cozinhavam de casa cheia no domingo, das cadeiras de noitinha nas portas das casas, da xícara de açúcar emprestada sobre o muro, das vozes de alegria roçando as folhas de araçá. Minha maior influência é a vida que corre lá fora. Elenco versos e excertos que conseguem, minimamente, levar isso para o papel, nele posso dizer que a poesia é assim, feita de sons, formas e movimento, bastante movimento, ao ponto de não conseguirmos precisar quando começa ou termina, é puro meio por onde pulsa sem parar.
5 — Caramelo é uma figura central no livro, descrito como um amplificador de sensações e proposições de vida forte. Pode nos contar mais sobre a criação e o simbolismo de Caramelo na sua obra?
Caramelo é um lugar em que podemos realizar a vida mais próxima do chão, mais real, sem alienações. E é justamente por isso que ele se torna um amplificador de sensações, por tocar a realidade ao atravessá-la, criando em seu itinerário uma consciência que percebe na valorização do humor, uma das formas mais honestas de entender os dias. A sua força está justamente na capacidade de olhar e deter em si um reservado protagonismo, mesmo que sua imagem social, numa tentativa histórica e cultural, seja reduzida a um lugar de esvaziamento. A representação simbólica que exala, desenha força, resignação e arpejos de uma canção ensolarada. A elaboração canina brasileira de nossa gente, Caramelo, que sofre, segue em frente construindo pontes que vão levar ao mar, sua alegria.
6 — A expressão "andar com(o) o caramelo" e outras metáforas permeiam seu livro. Como você escolhe e desenvolve essas imagens poéticas?
As imagens me escolhem. Convivo com os temas antes de escrever um livro, preciso passar um tempo pensando e fazendo parte de seu universo. Crio amizades e inimizades com as palavras. Em alguns momentos, de tanto entrar nos versos, chego a ser o próprio livro em uma energia que me conduz. Escrevo. Andar com o Caramelo é parte desse movimento, nele o leitor recebe a voz a construir um diálogo com a cidade, com as pessoas e com o movimento de estar “entre”, sempre. Pouco a pouco o leitor vai sendo conduzido até também querer, de alguma forma, chegar, encontrar o mar, seja ele qual for. Assim, o mar também é um personagem esperado, transfigurado, através dessa metáfora, em um campo de desejo que muito ensina sem proferir uma única palavra. Assim como são os segredos desta vida.
7 — Quais são as influências literárias que mais impactaram a criação deste livro? Há algum autor ou obra específica que você gostaria de destacar?
Neste novo livro há a presença da leitura, fica muito nítida a imagem de outros versos ou excertos de textos teóricos, pois andar coletivamente é consequência da leitura de nosso tempo. É a partir desse procedimento, como bem colocou o professor Moisés Alves, que Caramelo diz Walter Benjamin, Gregório de Matos, Flaubert, Baudelaire, Chico Buarque, Kátia Borges, Paulo Leminski, Manuel Bandeira e outros. Mas, sem dúvida alguma, Fernando Pessoa e João Cabral de Melo Neto ajudaram a criar neste projeto uma vontade de salvação pela poesia.
8 — A caminhada é comparada a uma forma de oração no seu livro. Pode explicar mais sobre essa visão e como ela se relaciona com a sua escrita?
Escrever é uma reação de fé. Entendo por oração a palavra que nos aproxima de um bem maior, seja por nossa intenção ou pela do outro. Logo, aquilo que se escreve ou se lê, é uma forma de prece. Caramelo ora com as patas atravessando as ruas da cidade, não há maneira melhor de acreditar. E são tantos os motivos para continuar o caminho, já que o mar é muito mais do que uma metáfora. A força dessa oração se justifica em sua própria essência de calor, no centro de um dia de mar ele se transforma no próprio sol. E assim, o que se merece e o que se pede se fundem em uma imagem de mil lugares cativados pela égide da poesia.
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Poemas
Madame Bovary, c’est moi
a cidade sou eu,
cortando, a quatro patas, o verbo
que a todos sustenta, por onde
passam dúvidas e sonhos.
a cidade sou eu,
escrevendo com os dentes
afiados na dúbia maestria
viva de mostrá-los –
veja!
a cidade sou eu,
tateando o que me foi legado:
a herança Macro-jê,
a diáspora atlântica,
marcas no fundo branco
do olho de toda gente.
a cidade sou eu,
revirando os ossos,
costurando na rabiola
do tempo o tempo.
a cidade sou eu.
não há crime maior,
o de existir
Reler
Releio? Menti! Não ouso reler. Não posso reler.
De que me serve reler?
Fernando Pessoa
ter a carne frágil e o além no peito,
os olhos mareados sem a lágrima a quedar.
ter na carne frágil o espírito do caminho
sobre o vago da imagem a se (re)desenhar
lá vai & lá vem, a insistir, a quebrar.
reler é onda do mar.
vejo e passo, balanço o rabo,
com o instinto não se consegue editar.
o que passou,
passou.
como anexar ao olhar o peso da lança e esperança,
escondido em um afiado fim?
empurrar o dia com a barriga
é uma linguagem nossa.
lembro de Barthes
Toda a recusa duma linguagem é uma morte
vejo na esquina o grupo que bebe.
em outra, o silêncio e propagandas políticas
&
finalmente,
um poste.
o alívio da leitura
certa.
Grupo 5, dezena 20
permear o verbo
com os pingos da chuva
de outra estação.
a serenar, deixá-lo
distraído. nada
acima da linha do mar
que o seu nome confunda
quando o fundo de tudo passar.
permear, ainda assim arde
a memória da carne
às forças deputadas por sangrar.
nada brinca mais do que
o simples das estações,
circular.
permear
o próprio sangue
ao lampo inesperado.
de repente, assim, inteiriço
das coisas que ficam,
se deixar levar
permear o flanco
do dia cinza.
minando ainda
de olhos entreabertos.
olhos de criança,
dentro do beijo, limpando
a bochecha e rindo.
amaneiro,
salvo ainda do peso
sem saber dizer
do calor que ilumina
Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo” Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.