Leia esta canção: Ednardo, uma celebração à musica e à literatura

 por Taciana Oliveira__



Na foto: Marina Ruivo

Em 2024, o icônico álbum
“O Romance do Pavão Mysteriozo", primeiro disco solo do cantor e compositor cearense Ednardo, completa cinquenta anos. A emblemática canção que batiza o LP, foi escolhida como a principal inspiração para o segundo volume da série “Leia esta canção”, da Garoupa Editora. Organizado por *Marina Ruivo, que também é escritora, o projeto continua a missão de promover o diálogo entre diversas formas de arte. A obra reúne contos inspirados nas faixas do álbum, escritos por autores como Caê Guimarães, Manoel Herzog e outros talentos nordestinos, em especial, cearenses. Além disso, oferece faixas bônus com textos e poemas que exploram a trajetória de Ednardo, complementados por ilustrações de Nivea Leite. O lançamento do livro, que ocorreu no dia 10 de agosto no Cerne Cervejas, em São Paulo, contou com um pocket show de Reynaldo Bessa e banda, e marcou também com a nova edição do cordel “O Romance do Pavão Mysterioso”, de José Camelo de Melo Resende.

A Mirada entrevistou a escritora e editora Marina Ruivo, organizadora do projeto:


1 - O que motivou a escolha do álbum “O Romance do Pavão Mysteriozo” de Ednardo para o segundo volume da série?

Para além do fato de esse álbum estar completando 50 anos em 2024, aspecto para o qual me atentei depois, a verdade é que sou completamente fã de Ednardo desde os meus vinte e poucos anos, como conto no texto de apresentação ao livro. Por isso, queria que o segundo volume fosse inspirado em um disco dele. Como diz Reynaldo Bessa no seu texto para o livro, “O Romance do Pavão Mysteriozo” é o disco mais redondo do Ednardo”, então não tive como hesitar muito na escolha. É um disco incrível do começo ao fim, simplesmente maravilhoso, e considerei que ele, com sua musicalidade e suas letras tão poéticas e inventivas, certamente inspiraria contos de impacto. Para minha alegria, foi isso que aconteceu. O livro traz contos muito bonitos e o resultado me deixou feliz demais. Sem contar os textos extras, que também estão extremamente sensíveis e criativos.


 2 - Ednardo é uma figura emblemática da música nordestina. Como foi o processo de reunir autores, muitos deles nordestinos, para criar contos inspirados nas canções deste disco?

Foi um processo muito gostoso e, de fato, eu queria que muitos autores fossem nordestinos. Considerei fundamental porque não faria sentido que só autores do Sudeste escrevessem a partir das canções de Ednardo. E assim consegui autoras e autores de Pernambuco, Paraíba e, especialmente, do Ceará. 

Comecei chamando aquelas e aqueles com quem tinha contato mais próximo, e então fui pedindo indicações de nomes de amigos e conhecidos. Foi uma alegria, assim, contar, por exemplo, com o sim de Virna Teixeira, escritora cearense que há muitos anos mora em Londres — olha só como o livro conseguiu congregar pessoas de várias partes! Quem me sugeriu a participação de Virna foi o escritor Luiz Roberto Guedes, um dos autores do primeiro volume da série. Ou conseguir o aceite de Sarah Forte, escritora cearense residente em Quixadá que me foi sugerida pelo amigo Vitor Cei, professor da Universidade Federal do Espírito Santo, em Vitória — cidade de onde escreveu o amigo Caê Guimarães, que por sua vez foi quem me colocou em contato com Mário Rodrigues, pernambucano. E assim foi se construindo a teia, uma grande roda de sugestões e indicações. Com a amizade e a colaboração dessas escritoras e escritores, tão generosos. E ardorosamente fãs de Ednardo. 


3 - Cada canção do disco deu origem a um conto no livro. Poderia compartilhar sobre o processo de seleção e designação das músicas para os diferentes autores?

Esse processo de designação das músicas não é fácil e nem sei se consigo explicar como fiz, mas vamos tentar. Eloísa Aragão, que é minha amiga há muitos anos, me pediu diretamente que a deixasse escrever sobre a canção “Pavão mysteriozo”, porque ela tem uma relação muito própria com o animal. Topei.

Depois, fiquei com “Carneiro” porque queria me desafiar a escrever algo que não tivesse a ver com amor. O resultado, no fim, acaba por ter também um pouco de amor, mas vai além disso. Tem o Araguaia, a música, o envelhecimento… E do ponto de vista masculino, o que é sempre um exercício ficcional. Escolhi a canção “Alazão” para o escritor Manoel Herzog por ela falar de cavalo e paternidade — tópicos que sei que são importantes para ele, que nos brindou com um conto belíssimo. Para Caê Guimarães, escolhi “Dorothy Lamour”, pelo cinema, pela diva, pela paixão. E assim foi o processo. Mas de fato não sei explicar por completo essa distribuição, que acabou, por exemplo, por desembocar em processos misteriosos, como a designação da canção “Avião de papel” para Roberto Menezes, que ao escrever o conto falou que foi muito especial ter recebido essa música, porque ela falou de perto para algo que ele estava vivendo diretamente em sua própria vida, naquele momento. Então, há um pouco de consciência, e há um bom tanto de deixar o inconsciente nos levar, e às vezes ele consegue esse tipo de encontros e sincronias, não é?


4 - O livro conta com faixas bônus que exploram a trajetória de Ednardo, além de poemas e uma letra de canção. Como essas contribuições extras se conectam com o tema central da obra?

Essas contribuições extras se conectam ao tema central de formas variadas. Assim, temos, por exemplo, poemas que o cearense radicado em São Paulo (e superativo na cena literária independente da cidade) Daniel Perroni Ratto escreveu a partir de quatro canções de Ednardo. Ou uma análise do lugar de Ednardo na MPB, feita por Fernando Naporano, poeta que é jornalista musical, além de músico. Ou uma crônica muito sensível do músico e escritor Reynaldo Bessa, que circula há alguns anos com o show “Reynaldo Bessa canta Ednardo”, a qual fala da importância central de Ednardo para sua própria criação e, mesmo, para sua vida.

Pingo de Fortaleza, a seu turno, músico, aborda a presença do maracatu cearense nas canções de Ednardo. Já Mona Gadelha fala da sua relação de amizade com o músico e da trajetória dele, assim como Rogério Miranzelo, em sua crônica, fala de momentos-chave do cantor e compositor. Esses textos, portanto, trazem várias faces de Ednardo e suas canções, contando ainda com a letra de uma música de Daniel Medina dedicada a Ednardo.

Na foto: Virna Teixeira, Ednardo, Roberto Menezes, Mona Gadelha, Vitoriano e Reynaldo Bessa



5 - A série “Leia esta canção” busca fomentar o diálogo entre as linguagens artísticas. De que forma você enxerga a interação entre literatura e música nesse projeto em específico?

A música é uma arte fundamental para a cultura brasileira. E, diferentemente da literatura, que é muito mais individual, a música é uma arte que reúne pessoas, que tem um caráter coletivo. Nesse sentido, propor esse diálogo da música com a literatura é buscar também fomentar um aspecto mais coletivo para a própria literatura, além de levá-la a criar tendo como estímulo a canção, esse gênero que, segundo alguns pesquisadores, como o crítico e professor Luís Augusto Fischer, é, ao menos no Brasil, um gênero literário. A ideia, assim, é movimentar essas fronteiras, aproximar as artes. Não à toa, os lançamentos dos livros da série contam com pocket shows, porque a música é central neles. 


6 - Qual a importância de ter realizado o evento em um espaço tão conectado com a cultura cearense?

Completa. Marcos Maia, um dos donos do Cerne Cervejas, foi quem me colocou em contato com Reynaldo Bessa, quando mencionei o livro para ele e comentei que estava em busca de alguém que tocasse Ednardo, para o lançamento. Marcos falou de Bessa e disse que eu podia inclusive pedir que ele escrevesse um texto para o livro. Foi o que fiz. Escrevi, convidei-o para o livro e para fazer o pocket show no lançamento, ele topou as duas coisas com entusiasmo e, no dia seguinte, já me enviava seu texto. Marcos, ademais, é o baterista da banda de Bessa. Então, foi toda uma conjunção de fatores.

Ademais, frequento há tempos o Cerne, adoro ver os folhetos de cordel pendurados ao lado da escada que leva ao andar de cima, as suas cervejas tão especiais, seu clima à vontade. Tinha de ser lá! 


7 - Este volume inclui uma nova edição do cordel “O romance do pavão misterioso”, de José Camelo de Melo Resende.  Qual a relação entre a tradição do cordel e a música de Ednardo?

Ednardo tem uma relação profunda com as várias tradições culturais nordestinas, e o cordel não podia ficar de fora. Quando escolheu como título, para seu primeiro disco solo, o nome desse cordel tão significativo, certamente ele estava bem consciente da escolha. Ele usa, inclusive, trechos de versos desse cordel na letra da canção “Pavão mysteriozo” — e jogou sabidamente com o universo fabular de libertação do domínio autoritário paterno, do cordel, levando-o a se relacionar com o desejo de libertação da ditadura, que naquele momento vivia ainda seus piores anos (início dos anos 1970). E o pavão misterioso é um aeroplano, uma máquina de voar, esse objeto que simboliza de modo tão forte o sonho humano de liberdade.

Ao descobrir que o cordel já está em domínio público, considerei fundamental fazer uma edição dele, com a expectativa de que seu texto seja conhecido. E ainda consegui uma gravura feita especialmente para a capa do cordel, feita pelo gravurista Lucas Gaspar


8 - Com ilustrações de Nivea Leite, o livro também traz uma forte componente visual. Como a arte gráfica contribuiu para a narrativa e a atmosfera do livro?

De forma decisiva. Neste segundo volume, resolvi fazer o que havia resistido em fazer para o primeiro, ou seja, organizar os contos a partir da sequência das canções no disco. Neste, dividi os contos em Lado 1 e Lado 2 (como são denominados no LP de Ednardo), e cada seção conta com ilustrações de Nivea, que fez ainda pequeninas ilustrações que encabeçam os contos. O livro, cujo projeto gráfico foi feito pelo designer Vagner Mun, está visualmente muito bonito e dialogando de forma íntima com o universo nordestino.


9 - A série iniciou com uma homenagem a Beto Guedes. Qual foi a recepção do primeiro volume, e de que maneira isso influenciou a abordagem para o segundo volume?

A recepção foi maravilhosa! Desde os primeiros momentos, ainda aqui em São Paulo, notei as pessoas muito felizes, muito contentes mesmo com a chegada do livro. Depois, quando fomos lançá-lo em Belo Horizonte, foi divino! O carinho das pessoas, o afeto, foi tudo um sonho! E tivemos a oportunidade de entregar um exemplar diretamente em mãos do Beto, algo mágico. 

Acho que essa recepção confirmou a percepção de que a série tem uma importância para a música e a literatura, que ela consegue congregar pessoas, gente de lugares diferentes, unidas pelo amor à música. 


10 — Para você, o que o leitor pode esperar ao mergulhar nas páginas de “Leia esta canção: Ednardo"?

O leitor pode esperar histórias muito impactantes de amizade, amor, interrogações sobre o tempo, e muito mais. E tudo narrado com um cuidado com a linguagem que é própria da grande literatura. Quero muito que esses contos sejam lidos e relidos, pela beleza que eles têm! E que o leitor depois mergulhe nas faixas bônus, nas várias facetas das canções de Ednardo, e no visual do pavão misterioso que alimenta o livro como um todo. 




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Trecho de alguns dos contos do livro "Leia esta canção: Ednardo"


“Mas você não vem. Sento na grama da praça, uma praça como tantas outras, uma encruzilhada entre tudo e nada, e te espero por longo tempo. Espero até que elas, estrelas, apareçam com todo seu brilho e verdade. Até que os meninos jogando bola no entardecer sejam substituídos por casais de namorados, mulheres malhando com roupas de ginástica, homens barrigudos caminhando. Tudo isso passa na minha frente sem o menor indício da sua presença. Esmago a tangerina em minha mão no momento que decido ir embora, é involuntário o movimento, um impulso nervoso natural, filho da frustração e do espanto. É que apesar de compartilhar seus lençóis, cuja geografia sempre desconheço assim que nos afastamos, e ainda que venha fazendo isso há seis meses, eu não sei como chegar em sua casa.”

(trecho do conto “L’amour”, de Caê Guimarães)


“Ele rescendia a maracujás azedos. E seu olhar, opaco, combinava com os lábios finos, finos demais, sempre crispados, como se tudo ao seu redor estivesse sujo. Ela o observava e era como contemplar um terreno vazio, não à espera de uma construção, mas esvaziado, pois nada mais se firmaria ali. Quando se dera aquela metamorfose? Não saberia precisar. O passado, a maior parte do tempo, lhe surgia feito espelho translúcido, neblina densa e leitosa. Seu marido há quarenta e oito anos tornara-se este ser... azedo.

Azedo e crispado. Queria palavras, mas elas estavam cada vez mais difíceis, perdidas em muitas encruzilhadas.”

(Trecho do conto “Ed, Ibaretama/CE, com amor”, de Sarah Forte)





*Marina Ruivo é escritora e editora da Garoupa. Publicou Geração armada: literatura e resistência em Angola e no Brasil (Alameda Editorial, 2015) e os livros de poesia Nossa barca (Editora Patuá, 2019) e Leite de mulher (Editora Patuá, 2021). É organizadora dos volumes da série “Leia esta canção” e possui contos publicados em livros diversos. Pós-doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ, é doutora, mestre, bacharel e licenciada em Letras pela USP. Nasceu num Dia Internacional da Mulher, em 1978, em São Paulo.




Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo” Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.