Não é que eu vi o Silvio Santos? | Crônica de Renata Meffe

 por Renata Meffe__


Fotografias do acervo de Renata Meffe


¨O contrário de dia mais o nome de um dos sete anões formam o título desta música”. Imagina encontrar-se frente a frente com o homem sorriso, enquanto ele lança enigmas desse naipe? 


A história começa no estacionamento de um hipermercado na zona norte de São Paulo. No centro do imenso pátio vazio, na manhã de uma segunda-feira — em que eu e minha amiga Viviane decretamos feriado — um veículo adquiria ares de ônibus mágico. Nos letreiros do para-brisa lia-se ¨Caravana da Casa Verde”. Marluce, a organizadora do grupo, com quem já havia conversado por telefone para acertar nosso ingresso na comitiva, nos aguardava. 


Vivíamos a primeira década do novo século e em poucos minutos embarcaríamos em uma aventura rumo ao universo que havia marcado nossa infância no milênio anterior. O destino da caravana era o Complexo Anhanguera, onde testemunharíamos as gravações do Programa Silvio Santos, mais especificamente do lendário Qual é a Música. A galerinha do barulho, com quem armaria altas confusões e me divertiria a valer nas próximas horas, consistia em senhoras de meia-idade, ou de idade já bem completa, tão animadas e conversadeiras como o apresentador que dava nome ao show televisivo.


A maioria ali não empreendia a jornada ao Sistema Brasileiro de Televisão pela primeira vez. Eram veteranas, experientes na arte de adivinhar canções: ¨Uma nota, maestro Zezinho¨. A pequena comunidade logo nos acolheu e quando o ônibus ganhou as ruas, compartilhamos amendoins japoneses e histórias saborosas de bastidores, regadas a fofocas sobre personalidades do show sbt business. Um mundo de seres fantásticos, composto por Ovelhas (Ou ou, iê, iê, sem você não viverei), Gilliards (Mexe, remexe, procuro, mas não vejo), Trios Los Angeles, Nahims e outras Perlas. 


Entre as poltronas, circulavam pequenos álbuns com folhas plásticas, repletos de fotos de integrantes da caravana abraçando o apresentador. Em algumas das imagens, encontramos um Silvio setentista, de costeleta, paletó xadrez e calça boca de sino. Em outras, o dono baú exibia seu sorriso num visual mais new wave, com direito a generosas ombreiras. Apenas o microfone, pendurado no pescoço a modo de colar cervical, permaneceria o mesmo, independentemente da década. Bem, o microfone e a habilidade cultivada pelo dono do Baú de adular quem ocupasse o poder, fosse na democracia ou no auge da ditadura. (O quadro televisivo ¨A semana do Presidente¨ que o diga.)


Uma das colegas de trabalho me mostrou, em retrato amarelado, ela nos anos 70, ainda criança, participando do Domingo no Parque, atração infantil que dava início à programação conduzida por Silvio Santos ao longo da jornada, que só seria finalizada com o Show de Calouros, à noite. Não faltava nos álbuns também a imponente Porta da Esperança, cenário do programa que oferecia benesses aos participantes. Toda semana a atração terminava com uma ameaça cármica. Jesus, em imagem plácida, alertava (com voz em off) os telespectadores: ¨Porque um dia vamos nos encontrar, e eu gostaria de chamá-lo de meu filho.¨


Ainda que o trajeto no busão já viesse nos colocando no clima ¨Silvio Santos vem aí¨, a hora da alegria chegou mesmo ao adentrarmos os domínios da ¨TV mais feliz do Brasil¨. Um lanche nos esperava: pão com queijo e suco de abacaxi. Além da sobremesa, beijinho de coco.



Uma vez instaladas no estúdio, antes da gravação começar, Silvio veio nos saudar. Falou sobre a felicidade de nos receber, ressaltou a importância de nossa presença para o espetáculo continuar e, pedindo que todas estendêssemos nossas mãos à frente do corpo e que com elas, em seguida, enlaçássemos nossos próprios ombros, anunciou: ¨Sintam-se abraçadas.¨ 


Beijinho e abraço? O homem sorriso sabia como ganhar uma platéia. 


Observamos o assistente Roque em ação nos bastidores. Chacoalhamos freneticamente pompons coloridos. E vimos o estúdio iluminar-se com a purpurina das pinturas faciais do Pablo da vez, dublando grandes temas do cancioneiro nacional. 


Naquele dia, a disputa do ¨Leilão das notas musicais" do ¨Não erre a letra¨ e do ¨Vitrola musical¨, entre outros quadros lendários (¨Este sucesso foi gravado ante de 1973 ou depois de 1973?”) contou com a presença da maravilhosa Sandra de Sá, que sagrou-se campeã pelo time das mulheres (¨É as mulheres, ô-ba! É as mulheres, ô-ba!¨). Não recordo quem era o oponente dela no jogo. Lapso que ponho na conta da emoção. Afinal, esta foi a tarde em que tive contato com as tão almejadas notas de dinheiro verde plastificado, equivalentes a 50 reais. As recebi diretamente das mãos da Marriete da vez. 


Eu tinha acabado de acertar uma canção que trazia na letra a palavra saudade.  




Renata Meffe — 
Jornalista, fotógrafa, documentarista, tradutora, professora & cronista. Sim, somente atividades altamente rentáveis. Escrevo ensaios que jamais estreiam.